No final da década de 1990, quando decidiu deixar sua bem-sucedida carreira no mercado financeiro para investir em restaurantes, o paulistano Marcelo Fernandes, hoje com 52 anos, começou a escrever um novo capítulo na cena gastronômica da cidade. Sua entrada no ramo foi como sócio de ninguém menos que o chef Alex Atala. Os dois criaram o DOM, que anos mais tarde receberia o título de melhor da América Latina — além de ficar em quarto lugar na cobiçada lista The World’s 50 Best Restaurants. O fim da sociedade não foi um rompimento e sim um passo além. Depois do DOM, Fernandes abriu casas como a Mercearia do Francês, Clos de Tapas e os premiados Attimo (que obteve uma estrela do Guia Michelin por três anos consecutivos) e Kinoshita, eleito o melhor japonês de São Paulo por diversas publicações especializadas — e que acaba de receber mais uma estrela Michelin, sua quinta desde 2015.

Vinte anos depois de sua estreia no mundo da alimentação, Marcelo Fernandes segue se reinventando. O luxuoso endereço onde funcionava o Clos agora abriga o recém-inaugurado Kurâ Isakaya Contemporâneo. Em japonês, Kurâ quer dizer adega. Izakaya, algo como “estar e continuar bebendo”. A casa segue o estilo informal dos botecos japoneses onde a estrela é a bebida, acompanhada de petiscos variados – espetinhos, empanados, caldos e quase nada de peixe cru. A comida chega à mesa em pequenas porções para ser compartilhar entre os goles.

No caso do Kurâ, apesar de a decoração continuar exuberante, com o salão de pé direito duplo e a parede de pedra que se destacava no antigo Clos, o cliente pode se surpreender pela proposta bastante acessível: o prato mais caro do cardápio está na casa dos R$ 40. “É uma quebra de paradigmas”, afirmou o restaurateur ao receber a reportagem da DINHEIRO durante uma das noites de “soft opening”, no final de abril. Enquanto provava um drinque à base de saquê com tônica, tomate e pepino, ele explicou os motivos da repaginada.

“O mercado de alimentação fora de casa mudou e eu preciso me adequar para atender às novas demandas da clientela”, afirmou. “Não é que as pessoas estejam sem dinheiro, mas elas valorizam mais cada experiência. Se quem vier aqui encontrar um ambiente agradável, um atendimento que se preocupa com os detalhes e também um preço acessível, vai voltar mais vezes”. Uma prova dessa quebra de paradigma é haver, sobre as mesas, sachês de molho shoyu – algo impensável em um restaurante classudo como o “irmão mais velho” Kinoshita, onde se pode pedir um champagne Krug cuja garrafa custa alguns milhares de reais.

Antes de abrir as portas do Kurâ, Fernandes já havia se rendido aos novos tempos da gastronomia. Aderiu à febre dos hambúrgueres com o Tradi, na Vila Nova Conceição, bairro nobre da capital paulista onde o empresário concentra a maior parte de seus negócios. Também montara um delivery da marca, que ainda este ano ganhará duas novas unidades. “As pessoas têm saído menos para comer. Seja pela falta de segurança, pela lei seca ou apenas porque preferem ficar em casa assistindo a uma série da Netflix”, afirma.

Panamá city: primeira loja da rede Tradi fora do Brasil: receita em dólar (Crédito:Divulgação)

Adaptar-se à realidade, evidentemente, não significa apenas reduzir os preços ou mudar o cardápio. No caso de Fernandes, a revisão do modelo de negócio passa sempre pela criação de novas fórmulas. Um exemplo é a Panneteria Attimino, criada para abastecer com pães de alta qualidade seus próprios restaurantes e que vem crescendo como fornecedora também da concorrência. “Por enquanto, nossa expansão tem sido no B2B”, diz Fernandes, sem esconder que os planos de abrir uma padaria voltada para o consumidor final. “Ainda não defini se teremos uma grande unidade ou se abriremos pequenas boulangeries, como tenho visto na França”.

INTERNACIONALIZAÇÃO No dia 15 de maio, uma filial da Tradi foi inaugurada na Cidade do Panamá. É o primeiro movimento de uma internacionalização que pretende chegar até Tóquio a tempo dos Jogos Olímpicos de 2020. “Eu quero deixar um legado”, afirma Fernandes. “E para isso eu preciso criar canais de receita que não apenas me protejam das variações cambiais, já que muitos dos meus insumos são importados, mas que também garanta um faturamento que independa do momento econômico que o Brasil estiver atravessando”. A escolha do Panamá se deu por uma razão quase afetiva.

O empreendimento tem como sócio Ernesto Fernandes, irmão de Marcelo que já possui participação nas outras casas. Também egresso do mercado financeiro, Ernesto morou na capital panamenha quando trabalhava para um banco multinacional. Já o investimento no Japão, ainda em fase de planejamento, tem a ver com a paixão de Fernandes pela cultura do país, algo que começou ainda na pré-adolescência, quando fez amizade com uma colega de escola nissei. Desde então, Marcelo Fernandes já esteve na terra do sol nascente uma dúzia de vezes.

KiNoshita: pratos sofisticados e serviço impecável garantiram mais uma estrela no Guia Michelin, onde o restaurante está desde 2015 (Crédito:Divulgação)

Sabe discorrer sobre o significado de cerimônias e rituais nipônicos e conhece como poucos os ingredientes que fazem diferença na culinária oriental. Foi no Japão também que ele descobriu que o estilo cordial de atendimento pode se tornar um valor adicional aos seus negócios. “Treinamos cada colaborador para que trate o cliente com o respeito e a gentileza tradicional do Japão”, garante. A equipe do Kurâ teve de aprender não apenas noções de etiqueta como algumas palavras em japonês para melhor desempenhar as funções. “A expectativa de quem escolher vir a um restaurante assim já é alta, mas precisamos superá-la para que ele realmente caia nas graças”.

O grupo de restaurantes que opera sob a holding Gastronomia MF nasceu e cresceu apenas com recursos próprios e da família. Além do irmão como sócio, a cunhada de Marcelo trabalha na Panneteria Attimino e um dos sobrinhos está sendo preparado para se tornar o CEO da empresa. Em vinte anos, e com casas cada vez mais prestigiadas, os Fernandes não ficaram imunes ao assédio de investidores. “Preferi manter o controle da operação, mesmo nos momentos mais difíceis”. Enquanto gesta o projeto Tóquio 2020, o restaurater de muitos tentáculos aguarda o momento de relançar a marca Clos. Os planos não descartam parcerias com hotéis para abertura de uma rede de restaurantes especializados em culinária espanhola. “Acredito que dentro de um ano teremos novidades também com o Clos”, diz o homem que tem sempre fome de negócios.