A maior prova de que o consumidor de baixa renda entrou de vez no vocabulário das grandes empresas está na forma como os executivos dessas companhias se referem a eles: shoppers. Não mais consumidores, nem clientes, nem fregueses, mas, sim, shoppers. Chique, não? Anglicismos à parte, o fato é que a grande indústria descobriu o que os mercadinhos já haviam visto há muito tempo: não dá para ser feliz no Brasil sem vender para esta casta que representa 87% da população, tem renda familiar mensal de até R$ 3,5 mil e um mercado de R$ 512 bilhões, segundo pesquisa do Instituto Data Popular. Isso explica, por exemplo, por que executivos da Johnson&Johnson deixaram os ar-condicionados de seus escritórios para fazer visitas periódicas a bairros pobres nas periferias brasileiras. O objetivo era entender melhor os hábitos de compra desse consumidor e desenvolver produtos e estratégias para conquistá-lo. O resultado foi um considerável aumento de vendas na divisão de consumo. Em 2005, as receitas da J&J atingiram R$ 1,4 bilhão, 17% em relação ao ano anterior. Grande parte, graças às compras das classes C,D e E.

Ao focarem na base da pirâmide, sem deixar o topo, as multinacionais espelham, na verdade, o que as urnas vêm mostrando neste mês de outubro: existem dois Brasis ? o do Centro-Oeste, Sudeste e Sul e outro no Norte e Nordeste. Dito na linguagem do consumidor de baixa renda, existe o Brasil do Alckmin e o do Lula. E as empresas querem vender para os dois. O do Lula, aprovado por 49% dos eleitores, vive, em boa parte dos casos, do salário mínimo e do Bolsa Família. Estes talvez sejam os grandes responsáveis pela explosão do consumo popular. O aumento recorde do salário mínimo e a inclusão de mais de três milhões de famílias no programa de transferência de renda do governo forraram um pouco mais o bolso do brasileiro. Dados da recém-divulgada Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) de 2005 revelam aumento de 4,6% na renda média real do trabalhador. E, segundo o IBGE, de 2004 para 2005, os 50% ?ocupados? com as menores remunerações tiveram ganho real de 6,6%. Multiplique o ganho real por milhões de brasileiros e entenda por que o mercado de produtos voltados à classes C,D e E deverá ?crescer? R$ 12 bilhões neste ano em comparação a 2005.

É nesse efeito Lula que a indústria está de olho. E agora com a vantagem de conhecer melhor o chão em que está pisando. ?Antes, a maioria das empresas acreditava que era só desenvolver um produto mais baratinho para conquistar o coração da dona-de-casa de baixa renda?, diz Renato Meirelles, diretor do Data Popular. ?Mas esses consumidores são mais fiéis à determinada marca ou fabricante do que os de classes mais altas.? O fenômeno tem uma explicação simples: com o orçamento apertado, a dona-de-casa das classes mais baixas não pode errar. E em algumas categorias ela faz questão de ter a marca líder ou pelo menos uma submarca da empresa líder. A Unilever foi uma das primeiras a detectar que sua força no segmento de sabão em pó também era sentida pela base da pirâmide. A fabricante do OMO decidiu criar, principalmente para a região Nordeste (a mais beneficiada pelos programas de renda do governo), a marca ALA. Com quatro anos de mercado, ela se tornou a líder de vendas na categoria popular. ?Fizemos pesquisas locais para desenvolver esse produto. As consumidoras pediam um sabão em pó que rendesse mais, com um bom perfume e uma embalagem resistente?, conta Adriana Muratore, gerente da Unilever. A última exigência, a da embalagem resistente, tem uma explicação: nos bairros mais carentes muitas donas-de-casa lavam suas roupas à beira do rio. E o pacote de sabão, invariavelmente, cai na água. O tradicional papelão, portanto, não resistia à prática e foi substituído por um invólucro de plástico. Outra medida foi distribuir o produto por meio de Kombis ?envelopadas? com o logotipo do ALA. Foi o marketing perfeito para uma população acostumada a comprar produtos de limpeza na caminhonete de um vendedor autônomo. Além disso, com as Kombis, a Unilever leva seus produtos a regiões de difícil acesso para veículos maiores.

Pequenas alterações (no formato ou na composição) para baratear ícones de mercado têm surtido efeito nos mercadinhos espalhados pelo País. Desde que criou uma nova versão do absorvente Sempre Livre, a R$ 2,10, a Johnson e Johnson viu o produto alcançar 7% de participação de mercado em apenas um ano (setembro de 2005 a agosto de 2006). As vendas de seu tradicional xampu infantil, com preço reduzido em 30%, também cresceram 150%, e o mesmo aconteceu com o hidratante Soft Lotion. Mais barato, ele apresentou aumento de 400% nas vendas e atingiu 12% de participação no mercado. ?A Johnson era uma fabricante de produtos voltados às classes A e B. Hoje, somos uma empresa para os dois Brasis, aquele que compra nossa linha francesa ROC, de produtos para pele, e o que compra o Sempre Livre a R$ 2,10?, diz Maria Eduarda Kertesz, diretora de marketing da Johnson Brasil.

Detectados os anseios do novo segmento, a J&J precisava ajustar sua distribuição e ser mais visível ao povão. Para os mercadinhos, desenvolveu o que Maria Eduarda chama de kit Arrastão ? uma cesta especial de produtos prioritários entregue apenas no pequeno varejo. E, para aumentar a visibilidade, criou um show de TV em parceria com Silvio Santos e um quadro no programa Ana Maria Braga. Ao todo, gastou R$ 55 milhões nos dois projetos. A empresa também espalhou pelas principais capitais o que Maria Eduarda define como lojas Pop up. Traduzindo: quiosques de venda em locais de grande movimentação popular, entre os quais o Poupa Tempo, em São Paulo, e a Super Casas Bahia.

Foi também para o público que freqüenta o Poupa Tempo e as Casas Bahia que a BSH Continental alterou o design de seus fogões. Promoveu mudanças simples, como a adoção de botões frontais removíveis para facilitar a limpeza do eletrodoméstico ? feita, nas classes mais populares, pela própria dona-de-casa. Além do novo desenho, a linha de fogões ganhou mudanças pontuais na manufatura, como a redução dos pontos de solda na grade superior do eletrodoméstico. Com isso, a empresa conseguiu reduzir em 3% o preço final do produto. O consumidor aprovou: no primeiro semestre deste ano, seus fogões abocanharam 21% do mercado nacional, estimado em 4,5 milhões de unidades. No mesmo período do ano passado, a participação da Continental era de 19%. A Danone foi outra que reforçou a presença de seu Danoninho no segmento de baixa renda, incorporando uma prática bem familiar a esse público: a venda picada. Além da bandeja com oito unidades, lançou uma versão com dois potinhos e, numa estratégia inédita, desenhou o preço do produto na embalagem: R$ 0,79. Na verdade não houve redução de preço. A bandeja com oito unidades custa R$ 3,10. Se fosse possível separá-la em pares, as duas unidades sairiam por R$ 0,77. Só que as grandes redes de varejo não quebram embalagens. Mas as pequenas, sim. E, quando o fazem, colocam na etiqueta margens estratosféricas: dois danoninhos chegam a custar R$ 1,20. Com a medida, a Danone evitou abusos e mostrou ao consumidor mais pobre que o petit-suisse pode fazer parte de sua lista. Em um ano, aumentou as vendas em 20%. Hoje, os brasileiros compram mais de 27 milhões de Danoninhos ao ano.

Indústria atenta, varejo mais ainda. Não foi por acaso que as grandes redes de supermercados resolveram investir em versões mais populares. O Carrefour tem o Dia%. O Wal-Mart lançou o Todo Dia e, após a compra do Bom Preço, agregou a rede Balaio e Mini Bom Preço ao seu portfólio. A idéia agora é colocar em todas as lojas de baixa renda ( são 17 atualmente) a bandeira Todo Dia e abrir 12 unidades nesse segmento em 2007. ?A dona-de- casa de baixa renda não gosta de hipermercados. A tentação é muito grande?, afirma a antropóloga Luciana Aguiar, sócia do Instituto Data Popular. ?Por isso, ela prefere os mercadinhos. Neles, faz compras picadas, conhece o dono, pendura a conta e se sente mais à vontade.? A indústria e o grande varejo descobriram, enfim, que o Brasil é um imenso mercadinho.

Tamanho do mercado de baixa renda

Faturamento em 2005
R$ 500
bilhões

Faturamento em 2006
R$ 512
bilhões

Comparativos

Para cada adulto das classes A e B existem
5,5
das classes D e E

Para cada criança das classes A e B existem
10,5
das classes D e E

Marcas ícones do povão

Sempre Livre
Vendido a R$ 2,10, ele atingiu, em um ano, 7% do mercado
Xampu infantil
Com ele, a J&J aumentou as vendas em 150%

Praticidade
Fogão fácil de limpar e mais barato agradou à dona-de-casa
Danoninho
Versão com dois potinhos virou febre de consumo

Quem é o consumidor popular

 

1 – Ganha de 0 a dez salários mínimos
2 – Representa 87% da população brasileira
3 – Gasta 30% do orçamento com alimentação
4 – Detém 1% do consumo de 65 categorias de produtos
5 – 41,5% têm menos de 20 anos
6 – Estudou, em média, 6,7 anos
7 – 57% trabalham na informalidade
8 – 88% não possuem curso superior
9 – Abrange um mercado superior a Argentina, Chile e Uruguai juntos
10 – Principal sonho de consumo: casa própria, seguida por automóvel