Em 24 de outubro de 1991, o Brasil vivia um dia ímpar. Foi nessa data que a Usiminas deixou as mãos do governo para ganhar o contorno da iniciativa privada e tornou-se a primeira empresa a sair do papel para o mundo real do Plano Nacional de Desestatização (PND). Colocado em prática pelo então presidente Fernando Collor de Mello, o martelo batido foi “um divisor de águas entre a modernidade e o Brasil arcaico, nas palavras do então ministro da Economia Marcílio Marques Moreira. “O Brasil novo começa a emergir.” De fato, esse foi só o primeiro passo. Com outras quatro empresas do ramo siderúrgico passadas para frente, entre elas a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), fechou-se o ciclo do aço. Poucos anos depois chegou a hora da segunda fase do processo, com privatização dos serviços — em especial o da telefonia. Com concessões, rodovias também trocaram de mãos. A ânsia das privatizações na década de 1990 era também uma resposta ao regime militar, que concentrava poder e só os concedia a amigos. Parecia que o Brasil ia deslanchar. Mas não foi. Com o passar dos anos, as privatizações perderam força e, mesmo com um atual governo dito liberal, estacionaram. “Poderíamos estar diante de uma terceira fase”, disse Vladimir Fernandes Maciel, economista e coordenador do Centro Mackenzie de Liberdade Econômica. “Mas infelizmente há um monte de questões. Desde a pandemia até a incompetência do governo.”

Para entender por que atualmente as privatizações esfriaram, é preciso olhar um pouco mais para trás. Na década de 1990, havia uma motivação internacional no processo de privatização de empresas como Embraer, Telebras e Vale. Com o fim de grande parte dos regimes militares na América Latina, os Estados Unidos apresentaram uma cartilha a quem quisesse se desenvolver. O plano basicamente passava pelo avanço do neoliberalismo com abertura econômica e comercial, aplicação da economia de mercado e controle fiscal macroeconômico. Um conjunto de medidas essenciais para qualquer país recém-chegado à democracia. Não havia espaço e receita do governo para sustentar de modo constitucional o peso do Estado. Era preciso vender empresas para que pudessem crescer e ajudar a desenvolver o País. E foi o que fizeram os presidentes Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso.

Mas o Brasil é um lugar sui generis. Aqui, o desejo de cada família era encaixar parentes no funcionalismo público — e garantir estabilidade e aposentadoria que os cidadãos da iniciativa privada nunca possuíram. Benessses desejáveis para uma economia que nunca foi estável por longos ciclos. E assim, desde o famigerado “O petróleo é nosso” de Getúlio Vargas, a privatização passou a ser um tabu. A ideia de passar ao capital uma empresa do Estado soa mais cruel do que realmente é. E as privatizações não vieram sem duras críticas. Uma das mais veementes, inclusive, do atual presidente da República, Jair Bolsonaro (funcionário público full time e que nunca passou pela inicativa privada). Ele nunca escondeu que a prática era uma “barbaridade”.

Chegou a defender o fuzilamento do ex-presidente FHC por ter feito tais privatizações. Quatro anos depois da privatização de Telebras, em 1998, assumiu o comando da república o ex-presidente Lula, e as privatizações ganharam novo capítulo. O PT, que também foi contrário à venda de empresas públicas, se viu em uma sinuca de bico. Precisava garantir receita para pagar o FMI, necessitava de crescimento econômico para ativar o consumo. A escolha da equipe econômica foi fazer “concessões”. Em oito anos foram 4,6 mil quilômetros de rodovias concedidas, além de hidrelétricas, linhas de transmissão e ferrovias. Carlos Luso, um dos economistas do ministério do Planejamento durante o governo Lula, disse que a solução era boa para atingir duas frentes. “Tirava despesa do governo e gerava emprego.”

ERA DILMA… Seguindo a mesma cartilha de Lula, o governo Dilma montou outro ambicioso plano de concessõe. Foram 35 com alto valor de outorga. Um sucesso. Pelo menos até os novos controladores dos ativos (como aeroportos e rodovias) acusarem o governo de inflar as metas de movimentos e fluxo e devolver a batata quente ao Estado. Mais contido, o governo Michel Temer até tentou criar o plano Ponte para o Futuro, com uma série de concessões requentadas de Dilma, mas nada saiu do papel. Foi para quebrar essa inércia de privatizações que o ministro da Economia, Paulo Guedes, prometeu em campanha privatizar tudo que fosse possível. Correios, Casa da Moeda, Serpro, Eletrobras, Infraero e tudo que “pesasse a conta do Estado”, como disse durante evento na Fiesp em setembro de 2018. O que ele não esperava é que o ímpeto estatista de Bolsonaro, potencializado pela necessidade de governar com a ala mais fisiológica do Congresso, falasse mais alto que o sonho liberal. A verdade é que as estatais são uma importante forma de escoar cargos políticos, pagar favores e esconder cifras. E, no fim das contas, para que o Congresso aprove uma privatização, só há duas opções: um governo tão forte e popular que obrigue os parlamentares a avançarem com o tema (como aconteceu no primeiro mandato de FHC) ou com um grande acordo nacional. Segundo Joelson Sampaio, professor de economia da Fundação Getulio Vargas, essa situação é comum. “O governo sempre fica em conflito de acomodar forças políticas.”

Uma demonstração clara dessas forças pôde ser vista no texto de privatização da Eletrobras, que circula no Congresso. Foram enfiados jabutis de todos os tipos. Para fazer com que os cargos comissionados sejam remanejados, para garantir que grandes obras como gasodutos e linhões fossem construídos por escolha do Congresso e para subsidiar por mais tempo energias poluentes. Custa caro privatizar. E nossos parlamentares odeiam.

ESTADO PAI DE TODOS E se custa muito capital político e social aprovar uma privatização, o retorno dos ganhos das empresas por meio de impostos, taxas e processos judiciais pode deixar a desejar. Pelo menos é o que mostra o Atlas da Dívida Ativa dos Estados, organizado pela Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco). Na lista dos 95 maiores devedores a entes da União, todas as principais privatizadas dão as caras. O argumento das empresas é de que as dívidas estão sendo contestadas na Justiça ou sob análise por distorção do entendimento tributário, o que não caracterizaria um “calote”. Mas, para as contas públicas, o não pagamento, seja por qualquer motivo, é um problema sério.

Entre as ex-estatais, a Telefônica, que ficou com a maior parte do leilão da Telebras, figura em terceiro lugar entre os 95 maiores devedores. A dívida da operadora era de R$ 3,15 bilhões em 2019. Na CSN, a dívida contida no relatório é de R$ 1,88 bilhão, enquanto a Vale (no ano da tragédia em Brumadinho) tinha sob análise jurídica mais de R$ 1 bilhão para repassar aos estados. Para Cinthia Oliveira Messa, economista e doutora em políticas públicas de privatização, o problema não é a privatização em si, mas condução do retorno dela ao País. “Ao privatizar, o governo perde o controle do que receberá em troca da empresa. Na teoria, desenvolvimento, emprego, renda e impostos. Na prática, pode não vir nada disso”, disse. Nesse sentido, ela conta que é preciso escolher o que privatizar para garantir que o retorno controlado (como emprego e renda gerados) seja maior do que a dependência de impostos e taxas. “Quando houve a privatização da Usiminas e da CSN, por exemplo, houve uma explosão de emprego nas fábricas”, disse. “O caso dos Correios é mais delicado. Já há uma grande mão de obra empregada e que atende todo o País. Difícil ver para onde cresceria.” Mas privatizar não se trata só de gerar emprego e renda. Trata de fazer sobrar dinheiro para auxílios sem PEC do Calote, por exemplo.

A questão da dívida e do retorno para a sociedade ultrapassa as privatizadas. A dívida ativa de todas empresas do Brasil com a União representa 13,1% do PIB, ou mais de R$ 896 bilhões. Valor que cresceu 31% entre 2015 e 2019. Segundo o economista Juliano Goularti, a cabeça por trás do estudo, recursos que deveriam estar nas mãos da União e revertido em ganhos para a população estão no caixa de empresas privadas. Para ele, o fato de não haver “crime tributário” no Brasil incentiva o chamado “planejamento tributário” e “elisão fiscal”, práticas para evitar o pagamento. O fato é que privatizar sem pensar só serve para agradar. Seja o capital, o político, ou os dois. Mas não privatizar tem servido para deixar a economia em estado de inanição permanente. E toda a sociedade paga por isso.