A história da indústria automobilística é pontilhada de curiosidades. Ela surgiu nos primeiros anos do século XX, quando empreendedores da Europa e da América decidiram copiar e produzir em série o carro criado por Karl Benz, em 1885, na Alemanha. Nasceram, assim, indústrias como a Ford e a GM, nos EUA; a Peugeot e a Citroën, na França; e a Fiat, na Itália.

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US$ 1 bi­lhão é o valor estimado de investimentos para criar uma 
fábrica de automóveis com produção de 300 mil carros ao ano

 

Depois da Segunda Guerra Mundial, entraram em cena os fabricantes japoneses, como Toyota, Honda e Subaru. E nos últimos 20 anos apareceram as marcas de países emergentes, como Hyundai e Daewoo (Coreia), Tata (Índia), Effa e Chery (China).

Hoje, pode-se dizer que cada país desenvolvido ou emergente, com algumas exceções, tem ao menos um fabricante mundialmente conhecido. Curiosamente, o Brasil está entre as exceções. E não é por falta de mercado. O Brasil é um dos países onde mais se vendem carros no mundo.

Dados da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) mostram que no ano passado foram vendidos aqui três milhões de carros de passeio e utilitários. Em produção, o País já é o sexto no mundo. Por que, então, nenhuma indústria brasileira surgiu nesse mercado?

É difícil encontrar só uma explicação para responder a essa pergunta. Mas especialistas são unânimes em dizer que se trata de um problema que abrange vários fatores. “A criação de uma montadora exige recursos de toda ordem e fôlego financeiro para suportar custos altíssimos e uma competição feroz”, diz André Beer, ex-vice-presidente da GM e consultor do setor.
 

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Zattera, da Agrale: ”A competitividade no setor é muito grande. Acho que as chances de 
alguém novo entrar nesse mercado agora são mínimas”

 

“Uma montadora 100% nacional teria problemas para criar uma marca que agradasse aos brasileiros já acostumados com montadoras consagradas internacionalmente”, diz o estudioso do setor José Roberto Ferro, presidente do Lean Institute Brasil. Sobram exemplos de empresas nacionais que tentaram se aventurar no setor. Uma após a outra, todas falharam: Romi, Vemag, Miura, FNM, Puma, Gurgel… O mercado era bom, mas elas precisavam de capital, marca, design, apoio do governo, tecnologia. Tudo ao mesmo tempo. E, em cada caso, ao menos uma característica incorreta do produto ficava evidente.

A Romi, por exemplo, fez em 1958 um carro para duas pessoas, quando as famílias brasileiras tinham, em média, seis. A Vemag era brasileira, mas sua tecnologia, alemã: fechou em 1967 comprada pela Volkswagen.

A Puma tinha design, mas não tinha capital. A Gurgel conseguiu algum capital na bolsa, fez campanhas publicitárias nacionalistas, mas seu carro saía caro e o design era de gosto discutível. Para piorar, nenhum desses fabricantes conseguiu construir uma marca forte. Justo no Brasil, onde nomes consagrados como Ford, GM, Fiat e Volkswagen estão gravados na mente e no coração dos consumidores brasileiros.

A ausência de uma montadora nacional pode ser explicada, sobretudo, pelo pouco apoio que o governo brasileiro deu para os empreendedores. Empresários de outros países emergentes encontraram ambientes quase iguais ao do Brasil, mas tiveram o apoio do Estado.
 

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Os emergentes: Em 20 anos, a China se tornou o maior fabricante mundial.
A Índia, com modelos populares como o Nano, está no mesmo caminho

 

Foi isso que permitiu que montadoras fossem criadas e se desenvolvessem na Coreia do Sul, na China e na Índia, por exemplo. A Coreia do Sul, país que tem o tamanho de Pernambuco e uma população de 140 milhões de habitantes, hoje é o quinto maior produtor mundial de veículos, com 3,5 milhões de unidades/ano.

Mas, para chegar a esse ponto, a indústria coreana contou com intenso apoio do governo, a partir da década de 1970. Ele incentivou a formação de grandes conglomerados econômicos, capazes de suportar os altos custos exigidos pelo desenvolvimento da indústria automobilística do país. E os resultados foram excelentes.

A Hyundai, a fabricante que mais se destacou, hoje é temida no mundo inteiro pela qualidade e pelo preço de seus produtos. Foi a única montadora que conseguiu crescer nos EUA, em 2008, quando todas as marcas perderam terreno. No final desse ano, em plena crise mundial, ainda inaugurou uma fábrica na República Checa.

A China, com seu gigantesco e cobiçado mercado interno, fez uma espécie de cobrança de ingresso para todos os fabricantes estrangeiros que lá desembarcaram: cada um deles foi convidado a se associar a uma empresa chinesa. Para produzir e vender num mercado que hoje é de 13 milhões de veículos por ano, todos aceitaram.

Agora, conta José Roberto Ferro, presidente do Lean Institute Brasil, esse mercado está fortalecido, amadurecido, e já surgem empresas 100% privadas, de capital chinês. Para uma indústria que 20 anos atrás fabricava somente um milhão de carros por ano, é uma evolução magnífica.

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Já na Índia, cuja produção anual de veículos está em 2,6 milhões de unidades, o aparecimento de uma montadora nacional de carros de passeio foi resultado da entrada de um grande conglomerado industrial no setor: o grupo Tata, a maior empresa indiana.

Depois de ter fabricado veículos comerciais desde 1935, seu braço automobilístico, a Tata Motors, decidiu em 1998 lançar um automóvel, o Indica, e concorrer com os modelos japoneses que dominavam o mercado.

Pequeno, de manutenção barata, o lançamento foi um sucesso e os seguintes colocariam a Tata num lugar de destaque entre as montadoras do mundo. Hoje, ela já está em 19º lugar. Seu desempenho no mercado permitiu que ela comprasse a Land Rover e a Jaguar, ícones da indústria britânica, a divisão de caminhões da Daewoo, na Coreia do Sul, e a Hispano Carrocera, fabricante de ônibus da Espanha.

Os exemplos de outros países emergentes revelam como o Brasil perdeu a grande chance. A rigor, o País poderia ter adotado a mesma postura com a qual lidou com a indústria aeronáutica. Com apoios financeiro, científico e tecnológico do governo, a Embraer se tornou a terceira maior fabricante de aviões do mundo – hoje, sob capital privado, disputa de igual para igual com concorrentes como Airbus e Bombardier.

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Em relação à indústria automobilística, o governo chegou a tomar algumas iniciativas como a criação da Fábrica Nacional de Motores, em 1942, durante o governo de Getúlio Vargas. A diferença é que, no caso da Embraer, ele não se contentou em dominar apenas a fabricação: quis comandar toda a tecnologia de desenvolvimento e produção dos aviões.

Isso explica não só os investimentos feitos na empresa, como também no ensino e na pesquisa, com a criação do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e do Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial  (DCTA), no final da década de 1940. “Hoje, só para montar uma única fábrica para produzir cerca de 300 mil carros por ano, é necessário pelo menos US$ 1 bilhão”, calcula Ferro.

Sem capital suficiente para competir num mercado bilionário, as empresas nacionais procuraram ocupar nichos, como aconteceu com a Agrale, de Caxias do Sul (RS), e a TAC, de Joinville (SC). Fundada em 1965, a Agrale tem duas fábricas no Brasil e uma na Argentina.  Produz tratores, pequenos caminhões, plataformas para ônibus e um utilitário para uso militar.

Hugo Zattera, presidente, diz que ela tem o know-how, mas não condições de competir no mercado de automóveis de passeio. “A competitividade nessa área exige recursos para abrir mercados, montar fábricas em locais com mão de obra barata e facilidades de financiamento. A tarefa não é fácil. Eu diria que as possibilidades de alguém novo entrar nisso são mínimas”, opina.

A TAC, fundada em 2004 em Joinville (SC), opera integrada ao setor de autopeças que se desenvolveu na região. Produz apenas um modelo, o off-road Stark, do qual vende 12 unidades por mês (embora tenha capacidade para produzir 40). “A TAC foi planejada como montadora de baixa escala”, comenta o diretor-presidente, Adolfo César dos Santos, ao explicar os números de produção.

As vendas poderiam ser maiores, mas a carga tributária é o maior empecilho para o desenvolvimento do negócio, afirma o executivo. A brasileira Troller, do Ceará, também tem uma produção pequena, da ordem de 100 unidades por mês. Mas seu produto, um jipe 4×4, era tão bom que a empresa acabou sendo vendida para a Ford, em 2007, por R$ 400 milhões. “A crise de 2008 nos deu uma chance de comprar as operações da GM, mas agora isso já não é mais possível”, diz o consultor Luiz Carlos Mello, ex-presidente da Ford.