Nem mesmo o melhor chef francês poderia prever um prato de entrada mais apetitoso para o jantar que reuniu o presidente Fernando Henrique Cardoso e sua equipe econômica, na quarta-feira, 3. Horas antes de se encontrarem na sala de jantar do Palácio da Alvorada, os participantes saborearam pelo menos duas notícias que os deixaram entusiasmados. Às 16 horas do mesmo dia, o banco central americano (Fed) tirou o fôlego do mundo ao cortar inesperadamente o juro básico americano em meio ponto percentual e colocá-lo no patamar de 6%. Uma hora antes, a Standard & Poor?s, uma das mais conceituadas agências de classificação de riscos do mundo, elevou a nota dos títulos da dívida brasileira. As novidades reforçaram ainda mais a onda de boas notícias que estourou no litoral do País nas últimas semanas. ?Escapamos do hard landing e agora o clima desanuviou?, comemorou o ministro-chefe da Casa Civil, Pedro Parente, sem esconder a euforia.

O jantar começou às 21 horas e foi regado a uísque e vinho tinto confiscados pela Receita Federal. Ao longo da refeição, a surpresa foi sendo absorvida e o clima passou da euforia para um otimismo comedido. Descontraído, o presidente pediu que Malan e Fraga projetassem cenários sobre a economia neste ano de 2001. O objetivo era saber se as medidas adotadas por Greenspan seriam suficientes para fazer a economia americana retomar o ritmo de crescimento dos últimos oito anos. Malan, Parente e Fraga concordaram que os Estados Unidos estão no caminho certo, mas alertaram que ainda é muito cedo para abrir champanhe, embora houvessem outros motivos para comemoração. No Brasil, a Bovespa havia subido 7,6% e a cotação do dólar, caído 0,61%. Fora, a Nasdaq atingiu a maior alta de sua história, de 14%, e os preços dos títulos de mercados emergentes alcançaram alta de 0,4%.

Na verdade, os convidados da sala de jantar presidencial esperavam que a redução da taxa de juro básica americana ocorresse somente no final do mês, na data marcada para a reunião que decidiria o assunto. Mas não no dia 3, como aconteceu. Nem tampouco esperava-se uma redução de meio ponto porcentual em uma só tacada. Primeiro porque Greenspan vinha reduzindo os juros em apenas 0.25 ponto porcentual de cada vez nos últimos meses. Depois, porque o governo brasileiro imaginava que a situação da economia americana não era tão ruim e, por isso, o Fed teria mais tempo para retomar a aceleração da economia. Daí, o otimismo cercado por cautelas. ?Os últimos resultados mostram que teremos um ano muito positivo?, avaliou FHC. ?Se o cenário otimista se confirmar, pela primeira vez, desde a década de 40, teremos um índice de crescimento do PIB superior à taxa de inflação?, disse o Ministro da Fazenda, Pedro Malan.

A verdade é que o Brasil começou o ano com o pé direito. No comando do manche financeiro, Fraga não se revelou apenas um talentoso presidente de Banco Central. Foi também um homem de muita sorte. No mesmo dia 3, o governo brasileiro organizava uma emissão bilionária de títulos da dívida externa em Nova York, o Brasil era premiado por outra excelente notícia, além do corte de juro promovido pelo Fed. A Standard & Poor?s elevou a nota (rating) das dívidas brasileiras de longo prazo em moeda estrangeira de B+ para BB-. A decisão funcionou como um sinal verde para que alguns fundos corressem atrás de papéis brasileiros. No dia seguinte, foram emitidos US$ 1,5 bilhão em títulos de cinco anos com rentabilidade de 10,54%. O montante foi muito superior ao esperado pelo BC, de US$ 1 bilhão, e o retorno ficou abaixo do que o governo brasileiro esperava pagar. ?Começamos muito bem o ano de captações?, comemorou o diretor de assuntos internacionais do BC, Daniel Gleizer.

Armínio Fraga estava participando de uma conferência telefônica com Amaury Bier, diretor da área internacional do BC, Daniel Gleizer e investidores, quando soube do corte dos juros americanos. ?Senhor Fraga, o Fed acaba de cortar os juros em meio ponto?, disse um dos participantes. Simultaneamente, Fraga e Bier olharam para as telas de computador para checar nas agências de notícias se a informação era verdadeira. Era. ?O senhor sabia tudo desde o início?, brincou um dos participantes da conferência. Fraga riu. Na verdade, ele não sabia, embora tivesse suas avaliações. Sua alegria tinha um outro motivo. O BC brasileiro também havia cortado o juro básico no último dia 20 de dezembro para os atuais 15,75% ao ano. A decisão do Fed reforçou a imagem de habilidoso estrategista que Armínio mantém no mercado financeiro. ?O talento de Armínio Fraga foi fundamental para o sucesso. Mas é inegável que uma conjunção de fatores favoráveis contribuiu para esse sucesso?, diz o economista-chefe do Lloyds Bank, Odair Abate.

Para o Brasil, a notícia não poderia vir em melhor hora. O corte promovido por Greenspan nos Estados Unidos pode fazer com que os juros básicos no Brasil sejam reduzidos na próxima reunião do Copom, nos dias 16 e 17. ?A taxa de juro é, a grosso modo, a soma da taxa básica americana, com o risco Brasil e a expectativa de desvalorização cambial. Quando a taxa cai lá fora, é normal esperar um ajuste no Brasil?, diz Raul Veloso, especialista em finanças públicas. Outro impacto positivo do corte de Greenspan será sentido no custo da dívida pública brasileira ? que totaliza R$ 500 bilhões no Brasil e US$ 88 bilhões no exterior. Com os juros mais baixos nos EUA, os investidores procuram outros lugares para apostar seu dinheiro. Apostam, por exemplo, em títulos brasileiros. O resultado da maior procura é a queda dos juros pagos pelo Brasil e, por tabela, do custo total da dívida. Foi o que aconteceu com a emissão dos títulos no dia 4.

Há outras vantagens no corte dos juros americanos. Greenspan só tomou essa medida porque as vendas no varejo e a produção industrial estão minguando e o consumidor está desconfiado. O impacto desse quadro seria devastador para o Brasil e para o resto do planeta se a recessão se aprofundasse. Não é o caso. A aposta é que Greenspan deu o remédio certo antes que a situação fugisse ao controle. Por isso, mesmo com a pequena desaceleração na economia americana, o impacto no Brasil não deverá ser dramático. ?O Brasil é o país mais preparado na América Latina para enfrentar uma desaceleração dos EUA?, diz Marcelo Carvalho, economista-chefe do JP Morgan. Para ele, a economia brasileira está nos trilhos e deverá crescer 4% este ano e apresentar juros de 13% até dezembro.

O freio americano também não deve frustar a expectativa de crescimento das exportações que, segundo o governo, será de 20% este ano. ?Os EUA são um mercado importante, mas a Europa ainda é nosso principal destino e a Aladi vem ganhando espaço nas nossas exportações?, diz a secretária de Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento, Lyhta Spindola. O setor privado também descarta o impacto negativo do esfriamento das vendas nos EUA. ?Vendemos para os EUA produtos com muita qualidade e preços baixos ? esses não devem ser tão afetados?, diz Maurice Costin, diretor de exportações da Fiesp. Tudo isso gera um clima favorável para investimentos no País. Espera-se, por exemplo, uma nova onda de dinheiro estrangeiro ingressando nas bolsas de valores brasileiras. A equipe econômica diz que dispensa o capital volátil e nada fará para atraí-lo. Declarações assim fazem parte do papel do governo, mas dinheiro não faz mal a ninguém.

Foto: AFP

?O Fed tem sempre razão?, festejou Larry Lindsay, assessor econômico do presidente eleito George W. Bush e ex-diretor do banco central americano, ao saber da redução de juros promovida por Alan Greenspan. A frase parece conter uma simples aprovação à decisão do Fed. Mas na prática inclui a admissão de que, para fazer um governo de sucesso, Bush terá de manter uma política de boa vizinhança com o presidente do BC (que, nos EUA, é independente). Ao reduzir os juros fora dos dias oficiais de reunião do Fed, Greenspan está deixando claro que vai combater a recessão. Mas também enviou um recado para Bush: quem manda na economia é ele, Greenspan. Não é coincidência que o pai do presidente eleito tenha tido atritos pesados com Greenspan, a quem atribuiu parte da responsabilidade por sua derrota nas eleições de 1992. No momento do anúncio, Bush estava reunido com empresários para defender um projeto que enviará ao Congresso cortando US$ 1,6 trilhão em impostos. Greenspan costuma dizer que, se for possível reduzir impostos, ótimo, mas isso não é uma ferramenta milagrosa para evitar a recessão. O manda-chuva do Fed não vê a medida com simpatia, por considerá-la demagógica. Na administração Clinton, ele reclamava que as arrecadações recorde deveriam ser usadas para pagar a dívida pública. Agora, diz que não se pode fazer um corte tão vultoso assim, de afogadilho. Um efeito imediato de sua decisão foi que os deputados democratas, antes assustados com a recessão e prestes a engolir a proposta de Bush, agora já insinuam que o controle dos juros pode ser suficiente para evitar a crise.