Às vezes a cultura pop pode trazer ideias, nem todas lindas. Perto do final de Batman – O Cavaleiro das Trevas, de 2008, o herói está perdendo a batalha para o Coringa, escondido no submundo. O cientista e CEO da Wayne Enterprises, Lucius Fox, entra por uma misteriosa porta em um subsolo e vê uma enorme parede preenchida de telas de computador, com milhares de áudios de todos os celulares de Gotham City. “Lindo, não?”, diz Batman. “Lindo, antiético, perigoso… Isso é errado. É poder demais para uma pessoa só”, afirma Lucius, acrescentando que o ajudaria desta vez a encontrar o Coringa, mas que se demitiria caso aquilo permanecesse na empresa. Batman já esperava isso e diz ao amigo que a senha para destruir todo o sistema era simples: “Lucius”. Oito anos depois, no mundo real, o sistema de espionagem Pegasus, do grupo israelense NSO, seria descoberto. Será ele o único? O spyware batizado com o nome do cavalo alado da mitologia grega símbolo da imortalidade consegue invadir celulares e monitorar conversas, em qualquer parte do planeta, e é quase indetectável. Como o personagem da DC Comics, a NSO está em maus lençóis. Banida pelos Estados Unidos de ser vendida dentro de seu território, descoberta sendo usada por compradores do sistema para espionar opositores políticos sauditas e poloneses e jornalistas do The New York Times, além de se debater com uma dívida de US$ 450 milhões, só lhe resta uma saída: vender a companhia e ouvir que interessados vão, como Lucius, destruir o Pegasus. Talvez tenham tirado a ideia do filme, quem sabe? Mas quem vai garantir que a empresa que comprar fará isso? Que o novo proprietário não terá acesso à base de dados de espionados e governos que compraram o spyware? Que milionário negócio existe na NSO sem ser a venda do Pegasus, que chega, por baixo, a US$ 10 milhões, por assinatura anual?

A casa começou a cair para a empresa, que já foi avaliada em US$ 1 bilhão, com o dito banimento e declaração oficial do governo americano em novembro de 2021: “As ferramentas da NSO permitem que governos estrangeiros conduzam uma repressão transnacional, praticando autoritarismo ao mirar dissidentes, jornalistas e ativistas fora de suas fronteiras para calar vozes contrárias”. Nem Lucius colocaria de uma maneira mais clara. Mas não há inocência nesse negócio. O governo americano notoriamente convive com o fato de um ex-funcionário de sua NSA (National Security Agency), Edward Snowden, ter revelado ao mundo em 2013 que os EUA tinham seu próprio sistema de espionagem oficial (como o Mainway, Association e Dishfire, entre outros), que monitorou por volta de 2012 a presidente Dilma Rousseff e o então presidente do México, Enrique Peña Nieto. Aliás, o mexicano não gostou e contratou em seguida o Pegasus para si por US$ 60 milhões e que estaria em uso por chefes de Estado posteriores até hoje. A espionagem sistemática americana, desde então, passou por novo escrutínio da imprensa do país, mas a prática está tatuada na maneira como lidam com outras nações que consideram potencialmente inimigas.

Curiosamente, segundo a empresa de dados, notícias e análise Debtwire, seriam fundos americanos os mais interessados na NSO, que contratou os serviços do banco de investimentos Moelis & Co. e aconselhamentos do escritório de advocacia especializado em negócios e indústrias, o Willkie Farr & Gallagher, para melhorar sua imagem nos EUA. A estratégia desses fundos seria realmente comprar e afirmar que fechariam o Pegasus — com a anuência do governo americano —, injetando, então, US$ 200 milhões em capital novo para guinar o know-how do Pegasus em algo estritamente de serviço de cyber segurança defensivo. Já monitorar essa postura independentemente é que seria o negócio…

INTERESSE BRASILEIRO Em rara entrevista, dada à revista Forbes em julho de 2021, Shalev Hulio, CEO e cofundador da NSO, afirmou: “Estamos vendendo nossos produtos somente para governos. Não temos como monitorar o que fazem. Mas se usarem inadequadamente o sistema, temos como investigar. Interrompemos o uso e já fizemos isso. Mas não podemos ser culpados pelo mau uso que fazem”. Resumindo: eles não garantem nada. O próprio governo brasileiro acenou para a NSO ­­— e não deu certo. A licitação no 03/21 do Ministério da Justiça de maio de 2021 para compra de sistema de espionagem tinha a empresa israelense como provável vencedora, com proposta de R$ 60,9 milhões. Mas foi suspensa seis meses depois pelo TCU, que afirmou que toda atividade estatal e de inteligência só poderia ser realizada por agentes com competência para isso — e reportagem do UOL, à época, apontou que o vereador carioca Carlos Bolsonaro, filho do presidente Jair Bolsonaro, estaria interferindo e colocando de fora o alto comando militar e agências do governo que cuidam do setor, como a Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Governos e agentes de investigação pedirem autorização à Justiça para monitorar criminosos ou investigados é prática comum no mundo, mas vender um sistema para quem quer que seja usar como bem entender, é outra.

Por que o Pegasus é um sistema perigosíssimo? Em um iPhone, por exemplo, segundo estudo minucioso divulgado pelo respeitado Citizen Lab de Toronto, além do já conhecido método one-click de envio de uma mensagem para o iMessenger, bastando a curiosidade de abri-la para se deixar infectar, a NSO estaria oferecendo a seus clientes a modalidade zero-click. Ou seja, o usuário não precisa nem clicar em algo, basta ter o número do espionado ou AppleID e pronto — a não ser que o cara viva numa caverna e não tenha celular. A NSO criou uma página em seu site chamada Human Rights, dizendo sempre estar “avaliando o potencial de adversidades impactando os direitos humanos com o mau uso de nossos produtos”. Mas se ela tem em seu cardápio o produto zero-click e não garante o bom uso dele, então… “A NSO é só uma empresa entre várias. É uma indústria que não deveria existir. O único produto que vendem é um vetor infeccioso. Não são produtos de segurança, de proteção, profiláticos. Não vendem vacinas, vendem vírus”, afirmou Snowden ao The Guardian. Batman, temos um problema…