Imagine que você comprou um carro e, ao abrir o porta-luvas, descobriu dentro dele dois relógios caríssimos. Teoricamente, eles valorizam o carro. O problema é que ninguém reconhece esse valor. A melhor solução é tirar os relógios do porta-luvas e vendê-los, embolsando o ganho. Foi isso que o Itaú Unibanco anunciou na quarta-feira (4). Para entender o negócio, é preciso retroceder no tempo. Em maio de 2017, o banco comprou 49% das ações da XP Investimentos por R$ 6 bilhões. A ideia original era aumentar essa participação para 62,4% neste ano e elevá-la para 74,9% em 2022. No entanto, no fim do ano passado, a XP Investimentos abriu seu capital em Wall Street e tornou-se XP Inc. Por um lado, um problema para o Itaú, que teve sua participação diluída para 46%. Por outro, um bilhete premiado para o banco. No fim de outubro, a fatia da XP que lhe custara R$ 6 bilhões estava avaliada em R$ 58 bilhões. “O problema é que ninguém reconhecia esse valor, que não aparecia nas avaliações do banco”, disse o analista da plataforma digital para investidores Guia Invest, Marcelo Fayh.

Para contornar esse impasse, o Itaú Unibanco informou que fará uma operação complexa com as ações da XP em seu poder. Nas próximas semanas, o banco vai retirar as ações do balanço e transferi-las para uma empresa, ainda sem nome. Essa nova empresa terá ações e todos os milhares de acionistas atuais do banco vão recebê-las, proporcionalmente à participação que têm no Itaú. Mais tarde, o Itaú vai abrir o capital da nova empresa na B3, permitindo aos interessados vender no mercado suas participações indiretas na XP.

É uma operação complexa e inédita no mercado brasileiro. Além do Itaú, nenhuma companhia aberta daqui possui uma participação relevante em uma empresa listada em Wall Street. No entanto, os analistas ouvidos pela reportagem da DINHEIRO são unânimes em afirmar que esse complexo xadrez societário foi uma solução magistral para resolver uma pendência que ia além dos balanços: a relação contraditória entre Itaú e XP, que são ao mesmo tempo sócios e concorrentes diretos.

NASDAQ Abertura de capital da XP em Wall Street, no fim do ano passado: valor de mercado da plataforma supera US$ 20 bilhões. (Crédito:Divulgação)

Quando adquiriu 49% de participação na XP e comprometeu-se a elevar essa participação para quase 75%, o Itaú visava comprar o único concorrente em potencial com capacidade para alterar as premissas do negócio bancário. Ao trocar gerentes por agentes autônomos e agências por relacionamentos bastante virtuais, a XP conseguiu abocanhar uma boa parte do filé das receitas bancárias com a distribuição de investimentos sem arcar com os custos pesados dos bancos. Era questão de tempo para a plataforma de investimentos se transformar em um banco tradicional. Para reduzir os riscos, o Itaú usou seu manancial inesgotável de caixa para comprar a ameaça. Segundo o sócio fundador da casa de análise independente Nord, Bruce Barbosa, o investimento na XP serviu para o Itaú descobrir como era possível vencer as barreiras de entrada no negócio. “A XP estava roubando clientes, e o Itaú queria estancar essa perda”, afirmou.

A posição da XP parecia contraditória. Meses antes de fechar o negócio, a empresa fazia campanhas publicitárias em que atacava direta e agressivamente os bancos. Nas peças publicitárias, os bancos ficavam com o dinheiro do cliente e entregavam pouco em troca. Como então, explicar a associação com o maior banco privado do País? Fayh, da Guia Invest, que foi associado da XP nos primeiros tempos da companhia, lembra que o trabalho de captar recursos não era fácil. “No mercado financeiro, você consegue atrair dinheiro dos clientes se for grande ou se for tradicional. A XP não era nem uma coisa nem outra”, afirmou. Daí a importância dos agentes autônomos para o modelo de negócios: eles captavam recursos com base na relação de confiança com os clientes. A associação com o Itaú zerou esse problema instantaneamente. O risco XP era igual ao risco Itaú.

“ABRIU A PORTEIRA” Logo após a aquisição, Guilherme Benchimol, um dos fundadores da XP e seu principal executivo, reuniu-se com muitos agentes e disse, basicamente: “abriu a porteira, pessoal, vamos arrebentar.” Não por acaso, o crescimento da XP acelerou-se exponencialmente após a associação. O passo seguinte do Itaú seria assumir o controle da plataforma e praticar a chamada destruição criadora, tão elogiada pelos consultores. Em vez de combater uma mudança tecnológica aferrando-se às práticas tradicionais, o banco iria absorve essa tecnologia e mudar seu modelo de negócios “de dentro”.

MUDANÇA DE PLANOS “Nossa participação na XP virou um investimento financeiro, em vez de um ativo estratégico. Concluímos que seria melhor transferir esses ativos diretamente para nossos acionistas”, disse o diretor-presidente do Itaú, Candido Bracher. (Crédito:Gabriel Cabral)

Cabia ao Banco Central (BC) dar a última palavra. E a última palavra foi “não”. Ao impedir que o Itaú assumisse o controle da XP, o BC alterou o foco do negócio, algo que o banco reconheceu há alguns dias. “Nossa participação na XP virou um investimento financeiro, em vez de um ativo estratégico. Concluímos que seria melhor transferir esses ativos diretamente para nossos acionistas”, disse o diretor-presidente do Itaú, Candido Bracher, ao anunciar os resultados do terceiro trimestre, no início de novembro. “Com isso, atingiremos dois objetivos: destravar valor para o banco e dar a opção para os nossos acionistas poderem fazer o que quiser com esse ativo”, afirmou.

A maior prova de que as coisas haviam mudado foi a campanha publicitária realizada pelo Itaú em junho deste ano. Nela, o banco criticava as recomendações de investimento da XP realizadas antes da pandemia, que havia provocado quedas violentas nos preços das ações. Quem conhece os meandros dos prédios que abrigam a sede do Itaú no Jabaquara, zona Sul de São Paulo, avalia que o público-alvo não se limitava aos consumidores. As críticas diretas, algo raro no diplomático mundo dos banqueiros, visavam elevar o moral das tropas, combalido pela perda de clientes. A solução seria vender a participação, mas isso impediria o banco de lucrar com a valorização das ações da XP após a abertura de capital nos Estados Unidos.

O Itaú anunciou que vai manter cerca de 41% de sua participação na XP, vendendo 5% das ações na abertura de capital. Dessa forma o banco tem várias vantagens. Pode recalcular o valor do ativo e reconhecer o lucro em seus balanços, sem ter de pagar o salgado imposto sobre ganho de capital para fazer isso. Resolve a contradição de ser sócio de um concorrente ágil, grande e competente. E, principalmente, pode aproveitar-se do que aprendeu desde maio de 2017 para competir com a XP no campo digital. Agora, a competição será ainda mais acirrada. Procurada, a XP informou que não comentaria o assunto.