Esta é a clássica história de que se parece cachorro, cheira como cachorro e age como cachorro, então é cachorro. Substituir a palavra cachorro por golpe premeditado aqui não estaria distante da verdade, provavelmente. Uma coisa é indiscutível. Um País falha quando permite que uma empresa arrolada judicialmente e mergulhada em dívidas consiga espaço num setor totalmente regulado, como o aéreo. O resultado é desastrosos: após seis meses, a dezenas de milhares de clientes ficaram na mão, sem receber o serviço contratado — e os empregados sem salários em dia.

A Itapemirim Transportes Aéreos (ITA) iniciou as operações em junho de 2021 com planos ousados: voar a 35 destinos e ter 50 aviões na frota até meados de 2022. Mesmo em meio a uma das maiores crises da história do setor aéreo global, por causa da pandemia. Seis meses depois, no entanto, a companhia interrompeu as operações para “reestruturação interna” após atingir 14 praças e acumular sete aeronaves. Uma aventura do empresário Sidnei Piva, dono e presidente do Grupo Itapemirim.

Antes mesmo de a ITA anunciar a suspensão das atividades, na sexta-feira (17), as críticas ao empresário já ganhavam força. Documentos obtidos pelo site Congresso em Foco mostraram que Sidnei Piva abriu, em maio, uma empresa no Reino Unido no valor de 780 milhões de euros, cerca de R$ 6 bilhões. A SS Space Capital Group UK ltd tem como atividades econômicas holding de serviços financeiros, fundos de investimento e investimento aberto.

A criação da empresa e o montante envolvido geraram críticas de credores. O Grupo Itapemirim está em recuperação judicial desde 2016. O passivo chega a R$ 253 milhões, além de R$ 2,2 bilhões em dívidas fiscais. Cerca de 4,5 mil ex-funcionários aguardam o pagamento de rescisões. “O Grupo Itapemirim não tem relação societária com a SS Space Capital Group e, portanto, não há nenhuma vinculação com o processo de recuperação judicial”, disse a Itapemirim à DINHEIRO, em nota. “A abertura da companhia é uma iniciativa do empresário para futuros projetos de negócios.” Ou seja, dinheiro para quitar dívida aqui não existe, para abrir empresa em Londres sobra. Pode ser legalmente defensável, mas moralmente não é.

REVOLTA NOS AEROPORTOS Interrupção das operações pegou os passageiros de surpresa e gerou indignação e protestos nos guichês. (Crédito:Werther Santana)

Como se fosse pouco, no início da semana, a Itapemirim, a exemplo das empresas Extrading Exchange & Trading Plataform e Future Design Solutions, foi acusada por investidores de não devolver cerca de R$ 400 mil pagos por criptomoedas cryptour. Segundo as acusações, a Itapemirim teria criado o cryptour com a intenção de comercializar 30 milhões de tokens ao custo de US$ 1 cada. A promessa era de valorização de 600% a cada US$ 1 investido no token nos primeiros seis meses e 3.600% após 12 meses. Os investidores afirmam ainda não terem mais acesso à plataforma da Extrading, que foi retirada do ar, para pedir o resgate ou ter acesso a informações sobre o destino do dinheiro.

O Grupo Itapemirim afirma que houve um projeto, mas que nunca realizou operação ou negócio envolvendo vendas de criptomoedas e que devido às falsas acusações registrou um Boletim de Ocorrência para apuração. “A conta bancária utilizada para a venda da criptomoeda não tem relação com o Grupo Itapemirim ou pessoas ligadas a ele.” Pode ser. Mas, ainda segundo o Congresso em Foco, documentos e vídeos vincularam a criptomoeda à marca do grupo. Ou a empresa agiu de boa-fé — mas deu muito azar e foi incompetente — ou agiu de má-fé. Aqui não existe terceira via.

MULTA A interrupção das operações da ITA gera novos problemas ao empresário. Na segunda-feira (20), a Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor de São Paulo (Procon-SP) notificou a companhia aérea pedindo explicações sobre a suspensão dos voos. Fernando Capez, diretor executivo da entidade, disse não se tratar de cancelamento por motivo de força maior. “É intrigante que uma empresa que acabou de ser aberta feche as portas e prejudique tantos passageiros.” A ITA poderá ainda será multada em R$ 11 milhões e obrigada a reparar o dano material e moral, por meio de uma ação civil pública que deve ser proposta contra a empresa ou seus sócios. A briga pode ser longa. A juíza substituta em plantão Débora Cristina Santos Calaço, da 11ª Vara Cível de Brasília, negou pedido de rembolso de passagens de um casal antes da data da viagem. Pesou o fato de o deslocamento não ser por urgência.

514 voos estavam programados pela ITA para o período entre os dias 18 e 31 de dezembro

Segundo estimativa do governo, 4 mil passageiros foram prejudicados pela paralisação da ITA. Esse é o número de pessoas que utilizaria o serviço da empresa aérea entre 17 de dezembro e 15 de janeiro, quando termina a operação de final de ano e de férias. A companhia ainda tinha 514 voos programados para este ano.

Os indicativos de que as coisas não vinham bem ficaram evidentes durante o semestre com atrasos em pagamentos de salários, de vale-alimentação, de plano de saúde dos aeronautas e em depósitos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Antes de a ITA realizar o primeiro voo, Piva revelou que dois fundos árabes, que tiveram os nomes mantidos em sigilo, subsidiariam o grupo com US$ 500 milhões. O recurso seria liberado em etapas, mas não chegou. “As condições para seguir com o negócio [empréstimo] não eram as melhores. Há investidores locais que querem participar do projeto”, disse o executivo à DINHEIRO à época. Ao que parece, o combustível secou e a ITA não alcançou a sustentação tão necessária. Ou nada disso existiria de fato.