As palavras que você acaba de ler foram escritas pelo historiador britânico Keith Lowe na introdução de “Continente Selvagem – O caos na Europa depois da Segunda Guerra Mundial”, livro de 2012 lançado no Brasil pela Zahar. O cenário que o autor descreve foi testemunhado por milhões de pessoas que sobreviveram à destruição causada pelo maior conflito bélico da História. Se a tragédia humanitária decorrente da pandemia causada pelo novo coronavírus terá as mesmas proporções, ninguém pode afirmar – ou negar. Contudo, a escalda de mortes (elas se aproximavam no mundo de 100 mil até o fechamento desta edição, às 13 horas da quinta-feira 9) e a interrupção da atividade econômica para conter o contágio não deixam dúvidas. O futuro próximo pode ser bem parecido com o caos deixado pela Segunda Guerra. A luz no fim do túnel jaz em uma certeza: também a Europa se recuperou daquele cenário de horrores para se tornar um bloco econômico rico e capaz de prosperar com elevado senso de justiça social.

Foi no dia 11 de março deste ano que Tedros Adhanom, diretor geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), declarou pandemia para o novo coronavírus. Em menos de um mês, os efeitos foram sentidos duplamente: na saúde e na economia, impactada fortemente pelo isolamento social decretado em praticamente todos os países como forma de conter o contágio. “A vida vem antes do lucro”, afirmou, na segunda-feira 6, o governador de São Paulo, João Doria, no discurso que prorrogava por mais duas semanas as restrições ao funcionamento do comércio e de serviços no Estado. Doria está certo na decisão e no argumento. Porém, a proteção à vida não pode se resumir a medidas que impeçam a proliferação de uma doença, por mais letal que ela seja. Apenas no Brasil, em 43 dias, a Covid-19 matou 800 pessoas. O número supera a soma das mortes por sarampo, dengue e a gripe H1N1 ao longo de todo o ano de 2019, segundo o Ministério da Saúde. Essa assombrosa letalidade é o que explica a aderência ao isolamento social, estratégia reconhecida por especialistas como a única capaz de reduzir a disseminação e conter a escalada de vítimas. Os efeitos colaterais da quarentena, contudo, ainda não são conhecidos. E a cada dia cresce a preocupação sobre seus efeitos sobre o futuro da humanidade, o que não se limita à dimensão econômica, puramente. O novo coronavírus corrói aquilo que moldou a vida contemporânea: nosso tecido social. Por isso, quando se fala em isolamento, não se trata apenas de interromper negócios que podem ser mortalmente feridos. Trata-se de uma mudar toda a estrutura de relações de trabalho, renda e consumo sobre a qual se apoia o capitalismo globalizado.

“A pergunta não é como minimizar perdas em vidas para o vírus e sim como minimizar perdas. A segunda onda depois do vírus é a da recessão, que pode ser três vezes maior que a de 1929”, afirmou o empresário Flávio Rocha, presidente do Conselho de Administração do Grupo Guararapes, que controla a rede de Lojas Riachuelo. Candidato à presidência da República nas eleições de 2018, Rocha participou na manhã da quarta-feira 8 de uma webinar (conferência on-line) com outros líderes do varejo promovida pelo Grupo GS & Gouvêa de Souza. “O desemprego, o desalento, também matam”, prosseguiu Rocha. “Se houver um aumento de 10% nos índices de violência urbana teremos um número de vítimas maior que no mais aterrador cenário da Covid-19”. Perguntado pela reportagem da DINHEIRO sobre como conter o caos social, o empresário usou uma metáfora médica: “A quimioterapia não pode ser tão fraca que não acabe com o tumor, mas não pode ser tão forte que mate o paciente.” Segundo Rocha, o risco é provocarmos “mortes invisíveis”. Ele sugere uma “visão holística” que permita evitar essa onda de desalento. Uma iniciativa exemplar nesse sentido é o movimento #nãodemita, que até a semana passada já contava com a adesão de 1,6 mil empresas, entre elas Magazine Luiza, BRF, Grupo Pão de Açúcar e os três maiores bancos privados do País. Segundo cálculo do Valor Data, apenas as 40 empresas que iniciaram o movimento empregam 1,1 milhão de trabalhadores (leia quadro à pág. 26).

É precisamente a forma de atravessar este período conturbado, tanto nos hospitais quanto nos demais setores da economia, que definirá a sociedade que teremos nos próximos meses e anos. Se quisermos afastar o fantasma da miséria que ronda o horizonte, é preciso entendê-lo. Uma pesquisa do Instituto de Economia da Unicamp comprova que a redução nos rendimentos do brasileiro virá com força. Os mais atingidos não serão os trabalhadores que recebem até um salário mínimo e sim os que possuem rendimentos entre R$ 5 mil e R$ 10 mil. Com o governo subsidiando parte dos salários mais baixos (entre 25% e 100%, como prevê a PEC 936/2020) o rendimento dos assalariados que recebem mais de R$ 10 mil em pequenas e médias empresas pode encolher até 82%. “Apesar de manter inalterada a renda dos trabalhadores formais que recebem um salário mínimo, todos os outros trabalhadores irão experimentar uma perda de rendimento”, afirma Ana Luiza Matos de Oliveira, doutora em desenvolvimento econômico pela Unicamp e uma das autoras do estudo. As empresas com faturamento inferior a R$ 4,8 milhões anuais que aderirem ao regime de lay-off (suspensão total da atividade) serão as maiores vilãs. “A perda média mensal do brasileiro no salário gira em torno de R$ 13 bilhões” (mais detalhes no gráfico). Como resultado, ela afirma que haverá impactos macroeconômicos significativos, reduzindo o consumo e retardando a retomada da atividade. A redução nos rendimentos dos trabalhadores de classe média gera uma pressão maior na base da pirâmide. “No cenário mais moderado, com uma perda média de 16% nos rendimentos, voltaríamos aos ganhos médios dos trabalhadores em 2011”, diz Cláudio Araújo, ex-pesquisador do Ipea.

Existe solução? Segundo o estudo da Unicamp, o governo deveria elevar a participação na renda dos trabalhadores o mais perto possível do original, o que custaria cerca de 0,2% do PIB. “Esse valor é muito inferior ao custo fiscal de outras intervenções anunciadas, como recursos destinados a garantir a liquidez no mercado financeiro”, afirma Ana Luiza, destacando que esse capital teria retorno mais adiante, já que haveria espaço para retomada do consumo e fortalecimento atividade econômica.

LIÇÕES DO PASSADO Como nenhuma crise é igual a outra, as lições aprendidas em 2008, quando o setor financeiro desmoronou, podem não ser eficazes nesse novo desafio. Dessa vez, os governos de todo o mundo foram chamados a agir não só porque as bolsas derreteram, mas porque populações inteiras estão aflitas. “A economia mundial entrou num terreno inóspito e terá que esperar meses para ver o alcance real do golpe em toda a sua extensão”, diz Ángel Talavera, chefe de análise da Oxford Economics para a Europa. Para ele, a escalada da doença na Europa, América e África colocam a batalha em um campo muito novo, e terá como efeito, além da diminuição das populações, um crescimento expressivo da extrema pobreza. Para Joan Roses, responsável pelo Departamento de História Econômica da London School of Economis, no Brasil haverá um reflexo muito parecido com o crash de 1929. “A lição a aprender com aquela época é a da operação: se você empobrece o outro, acaba se empobrecendo também”, diz Roses. Na avaliação dele, diante de uma economia muito fraca, garantir que as pessoas tenham renda para consumir é essencial para que o Brasil não retome os patamares de pobreza anteriores a 2000.

Para que internamente haja uma previsibilidade do caos, Carlos Santini, consultor técnico de assuntos econômico da Câmara dos Deputados, afirma ser necessária a criação de uma estrutura interligada dos três Poderes que tenha contato direto com estados e municípios. “Se prolongarmos a crise ou tentarmos defender só o topo da pirâmide teremos um efeito dominó de perda de rendimento e tiramos todos os ganhos da nova classe média conquistado entre 2004 e 2013”, afirma.

Enquanto o mundo assiste atônito à parcial vitória do vírus, os Bancos Centrais, do Brasil incluso, pensam em formas de proteger o grande capital, mas dão menos atenção do que deveriam a programas de transferência de renda que possam garantir que haja mercado consumidor no futuro próximo. Gregory Mankiw, da Universidade Harvard, defende que, ainda que governos estejam altamente endividados e sobrecarregado pelos passivos que se acumulam, é preciso pensar em soluções novas, e não nas velhas orientações de privatizar e abrir o mercado internacional. “Há momentos para se preocupar com a crescente dívida pública, mas este não é um deles”. O momento é de preocupação com o avanço da miséria.

Emprego garantido pelos próximos dois meses

Keiny Andrade

Criado por Daniel Castanho, da Ânima Educação, movimento #nãodemita recebe
mais de 1,6 mil adesões

Ainda que não traga a certeza um futuro tranquilo para seus funcionários, a adesão de pelo menos 1,6 mil empresas ao movimento #nãodemita está fazendo com que muita gente possa viver sem o receio de que perderá o emprego nos próximos dois meses. A iniciativa nasceu de uma conversa por whatsapp entre o empresário Daniel Castanho, presidente do Conselho da Ânima Educação (que tem 8 mil funcionários), e o empreendedor social Edu Lyra, criador do Instituto Gerando Falcões. Para envolver seus pares do meio empresarial, Castanho escreveu um manifesto. Depois, telefonou para pedir adesões. De cara, recebeu o apoio de 40 dos maiores grupos que atuam no País. Eles se tornaram signatários do compromisso de manter intacta a força de trabalho pelo menos até o final de maio. “Eu realmente acredito que, até por uma questão da economia, temos que manter o isolamento agora. Mas, por outro lado, temos que dar suporte para que o impacto seja o menor possível, e algumas empresas vão ter que absorver isso”, afirmou Castanho ao site BBC News Brasil.

Depois de endossada pelos bancos Itaú, Bradesco e Santander, por gigantes do varejo como Magazine Luiza, Lojas Renner e Grupo Pão de Açúcar, a ideia se espalhou rapidamente. Boticário, Cosan, porto Seguro, Suzano e XP Inc. assumiram o compromisso. Em alguns casos, além de não demitir, as empresas estão contratando. É o caso da BRF, que abriu 2 mil vagas para repor parte da mão de obra que está preventivamente afastada da operação por fazer parte do grupo de risco.

Covid-19 acelera corrosão do ambiente econômico da América Latina

BUENOS AIRES: Exército foi convocado para distribuir alimentos. O presidente Alberto Fernández suspendeu o pagamento da dívida. (Crédito:Victor R. Caivano)

Economias que ensaiavam recuperação neste ano podem ganhar mais 20 milhões de pessoas em extrema pobreza

Argentina, Chile, Peru, Colômbia, Venezuela. Além do idioma, algumas das maiores economias da América do Sul traziam – mesmo antes da pandemia do coronavírus – uma característica comum: a dificuldade econômica. Os países, cada um a seu modo, enxergavam em 2020 o ano da virada, com troca de governo, mudança de política econômica e planos de atração de investimento internacional. Mas tudo mudou. A Covid-19 tem socializado, de forma quase uniformizada, o agravamento desses problemas no continente. “Os países da região vinham, gradualmente, desconstruindo os instrumentos públicos que hoje seriam capazes de fazer frente a situações de crises coletivas, com a diminuição do setor público e tentativa de ampliar a participação da iniciativa privada”, afirma o economista Paulo Lira, coordenador e supervisor acadêmico da HSM University. “Como a resolução dos problemas está fora do âmbito individual, mas dentro de um plano público e coletivo, a tendência é que os países da região aumentem o hiato da miséria.”

SANTIAGO: Cancelamento de voos obriga passageiros a acampar no aeroporto. Impacto das restrições preocupa país onde o fraco desempenho da economia já vinha gerando protestos. (Crédito:Marco Ugarte)

Uma projeção da Cepal, braço das Nações Unidas (ONU) voltado para o desenvolvimento econômico da região, mostra que se a expansão do novo coronavírus pode resultar em uma retração de 5% na renda média da população, o número de latino-americanos em extrema pobreza saltará dos atuais 67,5 milhões para mais de 82 milhões. Na hipótese de a renda encolher 10%, o total de miseráveis pode superar 90 milhões de pessoas – cerca de 22 milhões de pessoas a mais em relação ao número atual.

Na semana passada, a Argentina deu o primeiro sinal de que a moratória pode ser a única saída para evitar o colapso fiscal. O governo do presidente Alberto Fernández suspendeu o pagamento da dívida com credores locais, condicionando-o ao avanço das negociações por uma reestruturação da dívida com os credores estrangeiros. A decisão envolve cerca de US$ 8,4 bilhões de um total de US$ 10 bilhões. O governo argentino pretende iniciar uma negociação de sua dívida pública total, que é de US$ 323 bilhões. Além dos credores privados, a Argentina também tem de reestruturar US$ 44 bilhões com o Fundo Monetário Internacional.

Jaqueline Mendes