Em 2016, ao ganhar o posto de 460 presidente dos Estados Unidos, o midiático Donald Trump prometeu construir um muro que dividiria os cidadãos norte-americanos dos latinos, em especial os mexicanos, que segundo ele tiravam emprego e renda dos filhos de Tio Sam. Quatro anos depois, na busca pela reeleição, o muro que isolava o país de seus vizinhos não saiu do papel. Mas outro se ergue. A avalanche democrática esperada com uma vitória certa de Joe Biden e conquistas relevantes no Senado e na Câmara por parte dos democratas não passou nem perto de acontecer. Até 13h de quinta-feira (5), pelo horário de Brasília, Biden tinha 72,2 milhões de votos, contra 68,5 milhões de Trump, segundo o The New York Times. Isso significava a conquista de 253 delegados, contra 214 do republicano. No Senado o placar estava 48 a 48. Na Câmara, 208 a 190 para os democratas. Nada de avalanche.

Trump, com seu discurso nacionalista, manteve ao seu lado um paredão de defensores ferrenhos. Com a maior democracia da Terra dividida, a polarização ideológica seguirá alta. Numa situação dessas, qualquer vencedor terá um turbilhão de descontentes. Dentro e fora dos Estados Unidos. A primeira a externar tal preocupação foi a primeira ministra da Alemanha, Angela Merkel. Segundo ela, independentemente de quem assuma, comandará um país dividido. “Há risco de uma crise institucional nos Estados Unidos”, disse. Na avaliação da comandante alemã, os últimos quatro anos de negociações foram difíceis, mas a Alemanha se manteve firme no interesse de continuar com as relações comerciais com a maior economia do mundo.

Sobre uma eventual crise institucional, o doutor em direito internacional e representante brasileiro do Escritório para Instituições Democráticas e Direitos Humanos da OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa), Fernando Cuarón, afirma que a escolha da narrativa no pós-eleição – questionar os resultados, por exemplo – marcará muito mais que os Estados Unidos. “A mesma estratégia pode ser adotada em outros países”, disse. Mesmo antes do término da apuração dos votos, Trump já pedia recontagem e avisava que iria questionar na Suprema Corte caso o resultado nas urnas não o conduzissem para mais um mandato. “O mundo esperava uma eleição pífia, diante de uma vitória esmagadora de Biden, e isso não aconteceu”, disse.

NADA DE AVALANCHE A onda pró-Biden ficou muito menor que se imaginava. (Crédito:Drew Angerer)

EM ONDAS Mais do que o efeito dentro dos Estados Unidos, a escolha do presidente da maior economia mundial também sinaliza o que esperar de outras disputas eleitorais mundo afora. No Brasil, a polarização que teve início em 2018, na eleição de Jair Bolsonaro, tende a se manter viva à medida que a divisão ideológica continue em terras estrangeiras. Para Cuarón, Argentina, Bolívia, Chile – que dará início a uma nova Constituição – e México são alguns dos países da América Latina que terão representantes que surfarão a onda discursiva de Trump contestando resultados desfavoráveis em qualquer situação.

Presente nas eleições americanas como convidado, o ministro Luis Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF) afirmou que o clima de rivalidade entre os eleitores de Donald Trump e Joe Biden lembra o cenário político no Brasil. “O clima de polarização que encontrei aqui se assemelha ao que temos experimentado no Brasil nos últimos anos”, disse o ministro em publicação nas redes sociais. Para o diplomata Rogério Castelli, que integrou a equipe da embaixada brasileira nos Estados Unidos entre 2002 e 2012, o posicionamento de Trump diante da derrota remete a uma visão que vai contra o momento que o mundo deveria experimentar neste momento. “Se colocar como injustiçado sem apresentar provas é uma solução que, além de covarde do ponto de vista político, causa uma instabilidade que impede o presidente eleito de avançar com o próprio governo”. Ele lembra que, em 2014, o Brasil experimentou situação similar. “Foi a derrota de Aécio Neves para a ex-presidente Dilma Rousseff que plantou a primeira dúvida sobre a legitimidade da presidente. E a sequência dos eventos foi um governo instável e sem capacidade de governar”, disse. “Eles queriam um muro para dividir pessoas. E conseguiram.” Para dividir a própria nação.