Havia, na semana passada, duas crises em curso na Argentina ? e era difícil escolher a pior delas. Uma, econômica, se traduzia em uma nova leva de estatísticas de encolhimento industrial, no rebaixamento da dívida externa pela agência de risco Standard & Poor?s e na constatação, humilhante, de que 29% dos habitantes da orgulhosa Buenos Aires vivem abaixo da linha de pobreza. A outra crise, política, podia ser vista no interior da Casa Rosada. Ali, digladiavam até a noite de quinta-feira, 16, o presidente Fernando de la Rúa e os 14 governadores da oposição peronista, aprisionados em torno de um pacote de ajuste fiscal que deverá congelar os gastos das províncias por cinco anos. Esse acordo é uma das condições para que o Fundo Monetário libere US$ 20 bilhões em crédito para que a Argentina não quebre nos próximos meses. Ocorre que um dos personagens centrais na costura do duplo arranjo, o ministro da Economia José Luiz Machinea, parecia estar se transformando gradualmente em fantasma. Ele conseguiu, na semana passada, ter sua cabeça solicitada em letra de forma num boletim do Salomon Smith Barney, o banco de investimentos americano que normalmente atua com discrição. Nos meios políticos, discute-se mais ou menos abertamente a substituição de Machinea. O mais forte candidato do momento é Ricardo Lopez Murphy, um economista liberal de grande brilho que está de reserva à frente do Ministério da Defesa.

Enquanto essas coisas se passam, enquanto o governo sangra em público, descobriu-se, também na semana passada, que o homem que deveria conduzir o país ao campo da esperança, o presidente De la Rúa, tem apenas 17% de aprovação popular ? em menos de 12 meses no cargo. Ele já é tido e havido como o homem fraco da sua própria equipe. ?A sensação é que não há piloto competente para comandar o barco?, resume, em Brasília, um funcionário graduado do Itamaraty, para quem De la Rúa é ?o maior fracasso presidencial? da história argentina. Outro diplomata, o ex-embaixador no Brasil, Diego Guellar, concorda integralmente. ?Vivemos uma crise de liderança política?, afirma o atual assessor de Carlos Ruckauf, governador peronista da província de Buenos Aires. ?A sensação de caos econômico é apenas uma conseqüência.? Guellar sustenta que a aliança no governo perdeu sua sustentação popular e partidária, e que a única forma de cumprir as tarefas da administração é costurar um arranjo programático com a oposição peronista. ?Primeiro discutem-se pontos programáticos, depois os nomes do governo?, diz o assessor de Ruckauf sobre uma possível troca de Machinea. ?O importante é entender que, sem o apoio peronista, o governo nacional não governa.?

Nos escritórios dos economistas portenhos, menos empenhados em esquartejar De la Rúa, tem-se uma impressão ao mesmo tempo mais sóbria e mais sombria dos eventos econômicos. Ricardo Fuente, economista da consultoria Ecolatina, fornecedora de inúmeros quadros para o atual governo, descreve o cenário de forma semelhante ao que ele é visto no Brasil. Há uma crise de crescimento, diz Fuente, e, enquanto ela não for solucionada, tudo o mais é paliativo. ?O acordo com o FMI vai apagar um incêndio, mas, se não voltarmos a crescer, em cinco meses estaremos de volta à mesma situação?, raciocina. Ele, como vários outros técnicos, acredita que a equipe de Machinea ? um dos quatro economistas ao redor de De la Rúa ? está tocando na direção correta, talvez ?um pouco devagar? no lado do crescimento. Se o cenário internacional se ajustar e as medidas de estímulo interno funcionarem, o carro tem boa chance de pegar na ladeira. Esta é a parte sóbria da análise.

?Nós somos os bons meninos, os que fizeram obedientemente as tarefas do consenso de Washington?
Ricardo Fuentes, economista

A parte sombria é que a situação real da economia está de causar medo. Enquanto o PIB se expande em um tango melancólico de 0,8% este ano, e, talvez, 2,5% em 2001, as contas a pagar evoluem em ritmo de samba. Os juros da dívida externa, por exemplo, custaram US$ 9,5 bilhões este ano e custarão US$ 11,2 bilhões em 2001, mas o país vai obter um saldo de exportações pouco acima de um bilhão de dólares. E o chamado investimento direto, que tem salvado o Brasil do pior, não se anima a atracar em um país há dois anos em recessão. No lado interno, o governo De la Rúa tem a árdua tarefa de reduzir o déficit público para ajustar-se ao acordo com o FMI. Mas como se arrecada mais impostos em uma economia em contração? Como se reduz gastos públicos num cenário de desemprego crescente e enorme pressão por gastos? Como se impõe a austeridade sobre inimigos políticos quando eles são maioria? É dessas perguntas, e da ausência de respostas óbvias, que brota a desconfiança de que o governo argentino possa não honrar seus compromissos. Daí vem a sombra do calote, que já está afetando, indiretamente, o crédito de todos os países emergentes. ?O pacote do Fundo é para evitar que a Argentina caia?, diz Fuentes, da Ecolatina. ?Afinal, nós somos os bons meninos, os que fizeram obedientemente as tarefas do consenso de Washington. O que cairia aqui seria o modelo internacional.?

A força desse modelo dentro da Argentina é opressiva. Esta semana, chega ao país mais uma delegação do Fundo chefiada pela notória Tereza Terminassian. O governo espera oferecer a ela um acordo já selado com os governadores, para apressar a liberação do empréstimo de emergência. Mas não é seguro que isso aconteça. Na sexta-feira, 17, com De la Rúa embarcando para o Panamá, seu chefe de gabinete, o economista Crystian Colombo, ainda tentava torcer o braço dos governadores. Eles haviam exigido que o congelamento de verbas nas províncias permitisse ao menos o crescimento vegetativo dos gastos de segurança, saúde e educação. Colombo topara na terça-feira, mas na quarta-feira o FMI vetou o acerto. A dependência do País em relação ao Fundo é tamanha, porém, que é provável que cedo ou tarde os 14 governadores peronistas acabem assinando o acordo. Em troca, De la Rúa terá de entregar a eles uma fatia grossa do seu poder de mando. Para escapar dessa canibalização, o governo deveria obter alguma forma de crescimento que fundeasse sua popularidade e desse consistência às contas nacionais. Mas, para isso, talvez seja necessário discutir o dogma indiscutível que tem mantido o país amarrado pelo pescoço: a convertibilidade 1 a 1 entre o dólar e o peso. Peronistas como Guellar são fanáticos da convertibilidade e não querem ouvir falar sobre mudança. Mas já há quem queira. ?A Argentina não pode seguir com medo de discutir esse assunto?, afirma Andrés Ferrari, diretor do Instituto Brasileiro da Universidade de San Marti. ?O povo tem medo de acabar com a conversibilidade porque não se acha moedas no ar, mas não colocar o assunto em discussão é uma loucura.? Assim parece.