Uma Reforma Tributária que torne mais justa a divisão de taxas e impostos no Brasil é discutida amplamente por todos os presidentes desde a primeira vez que Luiz Inácio Lula da Silva assumiu a República em 2002. De lá para cá, muito se disse, pouco se fez. Agora, ao lado de Bernard Appy, um dos mais respeitados economistas tributários do Brasil e dono de um projeto de reforma que tramita no Congresso Nacional, o presidente espera dar ao mercado, aos seus eleitores e à oposição uma resposta que agrade gregos e troianos. Com a fusão de duas propostas (as PEC 45 e 110) o plano é diminuir 20% as distorções tributárias que foram criadas no País com a sobreposição de normas, tirar o peso do imposto entre os mais pobres e elevar a arrecadação em R$ 1,5 trilhão em 15 anos. Tudo isso com um impulso de até 1 ponto percentual no PIB para cada ano. Segundo Appy, que neste governo recebeu o cargo de secretário extraordinário, a proposta virá dividida em duas partes. A primeira será a revisão do imposto no consumo. A segunda, uma nova tabela de Imposto de Renda. “Os estados, municípios, empresários e cidadãos entenderam que o sistema atual não funciona mais para ninguém”, disse.

Essa maior abertura para discutir o tema se deu após 2020 com os governadores. “Em 2008, nenhum aceitava negociar”, afirmou Appy. “Hoje eles se mostram mais abertos porque perceberam que o sistema atual é uma bola de ferro segurando empresários e investimentos.” O texto costurado envolve pontos nevrálgicos da tributação: a unificação de impostos e a cobrança no destino (e não na origem) do bem ou serviço. Para sentir o clima entre os parlamentares, os presidentes da Câmara e do Senado, Arthur Lira e Rodrigo Pacheco, montaram grupos de estudos na quarta-feira (15). O movimento é acompanhado de perto pelo ministro da Casa Civil, Rui Costa, e por Fernando Haddad, ministro da Fazenda. Na força-tarefa, o vice-presidente Geraldo Alckmin fará uma via sacra com empresários, em especial do agronegócio e do Sudeste. Também haverá ampla campanha na internet para que a população entenda a mudança. Tudo para reforçar o coro e dar celeridade ao processo no Legislativo. Na prática, o que a reforma muda?

Gabriela Biló

“Estados, municípios, empresários e cidadãos entenderam que o sistema atual não funciona mais para ninguém” Bernard Appy Secretário extraordinário da Reforma Tributária.

O imposto no meio do caminho

Se há uma reclamação comum a todos os empresários brasileiros é que a estrutura tributária é ruim, antiquada, desencorajadora e frustrante. Não à toa uma pesquisa da Amcham Brasil apontou que 68% dos executivos entendem que a Reforma Tributária é a medida mais importante para impulsionar a economia. E se o caminho parece evidente, a fé em mudanças não. Metade dos respondentes acha que o tema não vai lograr vitória em 2023. Segundo Abrão Neto, CEO da Amcham Brasil, esse ceticismo reflete a realidade. “Há anos se discute, sem sucesso, uma reforma abrangente”, disse. “O tema é urgente, complexo e, para avançar de verdade, demandará a liderança do governo e o engajamento do setor produtivo.”

Segundo Luiz Hauly, economista e um dos parlamentares (Podemos-PR) que se debruçaram na relatoria da PEC 110, a melhor chance de aprovar o texto com apoio dos empresários é manter alguns gatilhos da proposta de sua autoria, em especial pela criação de um sistema de crédito para compra de insumos lastreado na arrecadação. “A indústria prefere”, disse. Os empresários de serviço, ao lado do agronegócio, no entanto, ainda se mostram mais resistentes, já que são os dois setores que teriam revisão para cima das contribuições. E para isso, diz Hauly, uma solução é negociar desonerações. “Desonerar a folha de pagamento seria uma forma de compensar o aumento do imposto.”

Apesar da demanda, Appy tem deixado claro que o plano é não abrir exceções. “O foco da proposta é melhorar a isonomia e proporcionalidade.” O deputado Pedro Lupion (PP-RS), líder da bancada ruralista, é um dos que têm se posicionado contra. “O agro não pagará a conta da reforma. Não vamos aceitar”, disse em plenário. Essa visão sectária, e não em nome das necessidades do País, sempre predominou.

Entre os empresários, por exemplo, os que trabalham com tecnologia digital estão alertas. Isso porque cada estado classifica o segmento em um tipo de atividade (de serviços ou indústria), levando a vantagens tributárias. Segundo Sérgio Wulff Gobetti, pesquisador do Insper e do Ipea, a questão digital é um problema no mundo todo. “Alguns países taxam grandes empresas de tecnologia, outros exigem que serviço de streaming, por exemplo, pague imposto no país destino”, disse. “Ainda não há a solução perfeita.”

O medo é o pai do egoísmo

Antônio Molina

De longe a turma mais resistente a qualquer mudança tributária no ICMS (principal fonte de arrecadação dos estados) é a dos governadores. E eles têm olhado com atenção o andamento da Reforma Tributária, em especial as economias do Sudeste, maiores arrecadadores do imposto e que teriam potencialmente as maiores perdas. Segundo Sérgio Wulff Gobetti, do Insper, o temor de perder nasce de um medo que não se justifica, já que o imposto pago no destino estimula outras regiões e abrem-se novos mercados. “Esse estímulo é mais eficiente que a atual guerra fiscal”, disse.

Em Belo Horizonte, durante uma fala para empresários da indústria, o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, disse estar comprometido com a reforma, justamente por entender que o modelo atual está esgotado. “Não temos mais o que fazer por aqui. É preciso uma Reforma Tributária nacional que desafogue os empresários e não onere os estados. Essa deveria ser a prioridade zero de todos os governos.”

E a carta na manga dos governadores para facilitar o caminho da reforma e de quebra ainda garantir algum colchão até que ela se efetue será pressionar o governo federal para que se resolva a questão do congelamento do imposto promovido ano passado pelo ex-presidente Jair Messias Bolsonaro e prorrogado por Lula para segurar a inflação. Eduardo Leite (Rio Grande do Sul), Ratinho Júnior (Paraná) e Tarcísio Freitas (São Paulo) estão entre os que já têm cobrado ou uma compensação ou retorno do ICMS. Para o secretário extraordinário da Reforma Fiscal, Bernard Appy, esse diálogo está aberto. “Vamos ajustar os ponteiros, ouvir os lados e pensar na solução que seja a mais justa”, disse.

Esclarecer para florescer

Depois das experiências com as reformas Trabalhista e Previdenciária, o cidadão se acostumou a entender todo tipo de reforma como um processo doloroso e prejudicial para o povo. E é essa impressão que o governo Lula quer mitigar. Para isso, o secretário extraordinário da Reforma Fiscal, Bernard Appy, se muniu de dados que comprovam que o atual sistema onera mais, e de modo mais perverso, as pessoas mais pobres. Ele usou dados do Boletim Mensal sobre os Subsídios da União de setembro de 2019. Àquela época, dos quase R$ 15,9 bilhões relativos à renúncia fiscal da desoneração da cesta básica na tributação do PIS/Cofins, apenas R$ 1,6 bilhão foi destinado aos 20% mais pobres. Os 20% mais ricos se apropriaram de R$ 4,5 bilhões.

Uma forma de reverter essa distorção, disse Sérgio Wulff Gobetti, do Insper, é usar o aumento da arrecadação com o fim das desonerações nos itens da cesta básica em retorno direto para os mais vulneráveis. Há uma injustiça quando se generaliza o benefício. “O que ocorre quando desoneramos alimentos consumidos por ricos e pobres (como açúcar ou arroz).” E essa perda de arrecadação será reposta em aumento de água e luz, por exemplo, que proporcionalmente afeta mais o pobre.

Nesse sentido, Bernard Appy planeja uma espécie de cashback dos impostos. Sendo possível mapear exatamente quanto uma família de baixa renda paga de impostos e o governo podendo devolver esse dinheiro. “É uma forma eficiente de fazer política distributiva.” A ideia é que por meio do CPF um cidadão possa solicitar esse reembolso. “Dessa forma, poderemos estimular o crescimento da economia e ainda assim ser positivo do ponto de vista distributivo.”

Na avaliação de Mauricio Lopes Cunha, coordenador do curso de gestão tributária da Fecap, o projeto está de acordo com as diretrizes da ONU de redistribuição de renda, mas é preciso avançar em mecanismos de transparência, além de fortalecer o combate à sonegação e evasão de recursos. Emerson Kapaz, presidente do Instituto Combustível Legal (ICL), usa como exemplo um problema no setor que representa. “Hoje o governo federal deixa de arrecadar R$ 14 bilhões dos combustíveis por fraude tributária,” disse. Só com dinâmicas que fortaleçam o combate à fraude, afirma Cunha, “é possível combater a desigualdade social por meio de sua vertente mais efetiva: o abismo econômico.”

Impacto para empresas

O setor de serviços será prejudicado?
Ele precisará se readequar à chamada “nova economia”, que envolve todo um ecossistema digital e empresas cada vez mais globalizadas. Havia um gap na tributação brasileira que levou o setor a vagar em um limbo legal que, apesar de menos oneroso, também era mais incerto, mais judicializado e menos previsível, o que afastava potenciais players globais de atuar no Brasil.

Fazer uma reforma na crise econômica não piora a situação do País?
Sendo uma modificação neutra, que não prevê alta de impostos ou grandes impactos na cadeia produtiva, a implantação não seria fator específico a atrapalhar o desempenho das empresas. Além disso, a implantação das novas regras tributárias serão paulatinas.

Quais serão os gastos para a adaptação às novas regras?
A perspectiva é que, passado os sete anos de adaptação, as empresas tenham custos administrativos, de justiça e contabilidade reduzidos, em especial aquelas com operações em mais de um estado. A uniformidade trará previsibilidade, o que garante melhor capacidade de gerenciar e evitar fraudes e perdas contábeis.

Impacto para estados e cidades

A reforma reduzirá arrecadação dos estados?
O pagamento do imposto no destino (e não na origem do produto) estimula arrecadação em estados menos industrializados. Além disso, o fim da política de desoneração — feita como commodities por governadores para atrair empresas —extinguirá a guerra fiscal por lei.

Determinar o fim das desonerações não fere o pacto federativo?
Estados e municípios ainda terão autonomia para reduzir alíquotas de produtos e serviços. Políticas de incentivo continuam possíveis, desde que feitas com isonomia dos setores descrita no orçamento local.

Como o fim da guerra fiscal poderá ajudar os estados?
A falta de padronização em alíquotas favorece interesses poucos republicanos de gestores públicos. Em vez de atrair, afasta investimentos por falta de previsibilidade. Agora cidades e estados terão de investir em outras melhorias, de infraestrutura e logística, para atrair empresas e haverá mais espaço para concorrência em outros estados.

Impacto para pessoas físicas

Vou pagar mais imposto com a reforma?
A forma como nos relacionamos com os impostos será alterada. Hoje a carga é maior sobre o consumo de mercadorias do que de serviços. Na cesta de consumo das famílias mais pobres há mais mercadorias; nas das mais ricas, serviços. Um imposto com alíquota uniforme pesará menos nos itens mais consumidos pelas pessoas de baixa renda.

Pessoas ricas vão pagar mais impostos que pessoas pobres?
As pessoas de maior poder aquisitivo pagarão proporcionalmente mais imposto por ter mais acesso a bens e serviços que antes eram pouco (ou nada) taxados. Com a consolidação dos impostos prevista no projeto, se torna possível mensurar o peso das taxas na renda de uma família de baixa renda e criar uma política de reembolso diretamente aos mais necessitados.

Haverá encarecimento dos itens da cesta básica?
O atual modelo de desoneração da cesta básica, por atingir itens consumidos por ricos e pobres, será revista. Também é um equivoco afirmar que a desoneração chegava integralmente ao consumidor, já que algumas empresas absorviam o desconto. Com o fim dessa política, o aumento dos preços será mínimo. E haverá mais previsibilidade do governo para políticas sociais.