Existe uma expressão comum na Irlanda que diz “I’m gonna head out”. Na tradução mais precisa para o português, isso seria algo como “eu vou dar o fora daqui”. É possível que CEOs de grandes corporações americanas de tecnologia estejam com a frase na cabeça por esses dias. Como no caso da Apple, que durante mais de uma década se beneficiou de leis irlandesas para economizar bilhões de dólares e se tornar a maior empresa de capital aberto do planeta, com valor de mercado que, na terça-feira 8, chegou a bater em US$ 945 bilhões. Em 2016, a Comissão Europeia resolveu agir para evitar a sangria tributária, considerando as vantagens fiscais concedidas pela Irlanda como ilegais. Este mês, a Apple começa a pagar mais de € 13 bilhões em impostos atrasados no país.

Mais do que a cifra bilionária, a decisão judicial coloca um ponto de interrogação no futuro do “Vale do Silício europeu”, como ficou conhecida a Irlanda pelo fato de atrair as principais empresas de tecnologia do mundo. Além da Apple, gigantes do setor como Google, Facebook, Airbnb, Twitter e um sem-número de companhias da área escolheram o país, em especial sua capital Dublin, para montar escritórios comerciais ou mesmo centros de pesquisa. Adotaram essa região com 5 milhões de habitantes por razões muito mais fiscais do que técnicas. Sem a isenção, o investimento direto estrangeiro caiu dos US$ 188 bilhões de 2015 para US$ 22 bilhões em 2016. No fim do ano passado, registrou um desinvestimento de US$ 21 bilhões. De acordo com o jornal britânico Financial Times, os valores alocados em contas de paraísos fiscais graças a mecanismos fiscais como esse podem chegar a US$ 1 trilhão.

A estrutura tributária vigente entre 2003 e 2014 se chama Double Irish, que permitiu às empresas americanas evitar a alíquota de 35% sobre os lucros cobrada pelo fisco nos EUA. O plano consistia em montar sucursais na Irlanda e na Holanda para movimentar entre elas os lucros obtidos na Europa e em regiões como Oriente Médio e África (confira detalhes no infográfico abaixo). O destino final do dinheiro seria uma conta aberta em um paraíso fiscal. A legislação autorizava a companhia manter uma offshore em Bermudas, onde a alíquota de imposto cobrado de empresas é 0%. “O Double Irish permitia o pagamento de impostos próximo a zero com base em estruturas que muitas vezes não tinham propósito operacional, a não ser a economia fiscal”, diz Daniel Tanganelli, advogado e coordenador tributário do escritório Albino Advogados Associados.

A Alphabet, holding que controla o Google, teria economizado US$ 3,7 bilhões em impostos em 2016. Isso porque, de acordo com dados da Câmara de Comércio da Holanda, fez uso da manobra fiscal para movimentar € 15,9 bilhões para Bermudas naquele ano. A Microsoft também entrou no jogo. No ano passado, a dona do Windows tinha 95,4% de suas reservas monetárias, em torno de US$ 138,5 bilhões, depositadas fora dos EUA. Parte desse montante passou pela subsidiária Microsoft Ireland Operations Limited. Ao mesmo tempo, a companhia concluía a construção de uma sede em Dublin.

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O novo prédio, com capacidade para 2 mil funcionários, conta com uma cachoeira e um lago exibidos digitalmente em telas de LED. A obra custou € 134 milhões. Segundo a Câmara Americana de Comércio da Irlanda, os investimentos americanos no país somaram US$ 310 bilhões em 2014. Para efeito de comparação, a verba injetada em toda a América Latina no mesmo ano foi de US$ 139 bilhões. Em troca de isenção fiscal, o Double Irish gerava negócios e empregos na Irlanda. A região em torno de Dublin chegou a ser conhecida como Docas do Silício, em referência ao berço das empresas de tecnologia no estado americano da Califórnia.

O fim definitivo do Double Irish está marcado para 2020. Quem já usufruia do benefício pode continuar até lá, a não ser que seus valores astronômicos chamem a atenção dos governos, como no caso da Apple. Nesse caso, as multinacionais registradas na Irlanda serão obrigadas a pagar impostos de 12,5% sobre seus lucros. “De forma geral, essa tributação ainda é atraente e mantém a Irlanda como uma boa opção de investimento para o mercado de tecnologia”, afirma Tanganelli. Após o fim do arranjo, a Irlanda passou a oferecer um incentivo a pesquisa e desenvolvimento. Com ele, empresas de propriedade intelectual podem deduzir 50% do investimento, baixando o imposto irlandês de 12,5% para 6,25%. Porém, menos de € 80 milhões foram economizados desde 2016 por essa via.

“Mesmo com alíquota superior à irlandesa , voltar para ‘casa’ pode resultar em benefícios para as empresas”, diz Alexandre Almeida, advogado e sócio da consultoria empresarial Mazars Cabrera. Pressionado pelo governo americano desde 2014, quando pagou somente £ 4.327 em impostos no Reino Unido, o Facebook foi a primeira grande empresa de tecnologia a fazer isso. “A receita de publicidade de nossas equipes locais não será mais registrada em nossa sede em Dublin”, disse Dave Wehner, diretor financeiro da companhia, em dezembro de 2017. A decisão não foi por acaso. A receita federal americana calcula que a empresa de Mark Zuckerberg pode ter que pagar até US$ 5 bilhões em impostos relativos ao período entre 2008 e 2013.

“O Facebook está procurando maneiras de evitar entreveros com órgãos reguladores e políticos”, diz Steve Massocca, diretor-geral da consultoria americana Wedbush Securities. Como a ira do presidente americano Donald Trump, que chegou a afirmar: “Por tempo demais nosso código tributário incentivou empresas a deixar nosso país em busca de impostos baixos. Elas foram para a Irlanda.” Em resposta ao problema, o governo americano reduziu de 35% para 21% a alíquota de imposto para empresas no fim do ano passado. Foi a maneira de Trump fazer os CEOs de empresas americanas pensarem duas vezes antes de adotar expressões irlandesas em seus vocabulários.