Enquanto o Brasil, oitava economia global, luta para ingressar na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e ter direito a debater parâmetros com os países mais industrializados do mundo, metade dos seus habitantes não tem rede de esgoto. São mais de 100 milhões de brasileiros expostos a doenças por falta de recursos para o saneamento básico. Segundo a Agência Nacional das Águas (ANA), 110 mil km de rios estão poluídos e são usados para escoamento de esgoto. Cerca de 14% das crianças e dos adolescentes não têm garantido o direito à água tratada. É para combater esse cenário desolador que um novo marco regulatório está prestes a entrar em vigor. O texto determina que a regulamentação, hoje atribuição dos municípios, siga diretrizes unificadas pela ANA. A agência será responsável por regular as tarifas e estabelecer mecanismos de subsídio para baixa renda. A medida prevê licitações e veta os chamados “contratos de programa”, que hoje favorecem a parceria entre estatais e os municípios.

A esperança é que a abertura para empresas privadas acelere o ritmo de investimentos, mas há discórdias na tramitação Medida Provisória (MP) que altera o marco regulatório. De um lado, 24 governadores defendem as empresas estatais e a “inconstitucionalidade” das mudanças. De outro, há quem veja no modelo atual o principal obstáculo para o avanço da universalização. “O sistema baseado em empresas públicas, muitas delas deficitárias e com grandes problemas para conseguirem empréstimos, não dá mais conta de um país que tem metade da população sem tratamento de esgoto”, afirma Édison Carlos, presidente do Instituto Trata Brasil, que defende a MP. Debatido por dois anos, o texto tem, em sua avaliação, pontos importantes como a possibilidade de os pequenos municípios poderem trabalhar em conjunto e construírem planos de saneamento por bacia hidrográfica. “Não podemos assistir passivamente lugares onde uma pessoa de 60 anos nunca teve água na torneira, esgoto coletado e tratado, e fique à mercê de uma empresa só porque ela é pública”.

UNIVERSALIZAÇÃO O Plano Nacional de Saneamento Básico, de 2014, previu que a universalização dos serviços de água e esgoto necessitaria de R$ 508 bilhões até 2033, ou R$ 26,73 bilhões anuais. O problema é que esse patamar nunca foi atingido. Os recursos alocados no setor não chegaram nem à metade da quantia e seguem caindo. Em 2016, foram investidos R$ 11,51 bilhões, 0,18% do PIB nacional. Em 2017, R$ 10,96 bilhões. Nesse ritmo, a universalização só será alcançada em 2066. Isso sem considerar o crescimento populacional. Imersos em profunda crise fiscal, os estados não possuem recursos suficientes para os investimentos, e mais de 70% das cidades no Brasil são atendidas pelas companhias estaduais.

Presentes em 325 municípios, as empresas privadas têm apenas 6% de participação no mercado. Os outros 24% estão com as companhias municipais. Dados da Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Saneamento (ABCON) mostram que, há dois anos, a iniciativa privada investiu R$ 1,98 bilhão em serviços de água e esgoto, 18,1% do total. A aprovação da MP deve turbinar esses números, garante Percy Soares Neto, diretor da entidade. “Interesses políticos ameaçam bilhões de investimentos, que gerariam 700 mil novos empregos, e colocam em risco a saúde de 100 milhões de brasileiros”, afirma Neto. “Será preciso esperar mais 10 anos para termos uma solução para essa calamidade pública?”

Ao colocar a ANA em papel de destaque, a MP tenta resolver a profusão de normas. Até o fim de 2017, havia 49 agências reguladoras de saneamento básico, 22 de abrangência estadual, 23 municipais e três de consórcios municipais. Por isso, antes mesmo de saber se a MP será aprovada, os funcionários da ANA estão mobilizados em grupos de trabalho e se reunindo com entidades representativas do setor. “Queremos oferecer segurança jurídica com as regras e instituir as melhores normas”, afirma Christianne Dias, presidente da agência. “Temos modelos públicos bem sucedidos e modelos privados também. Isso não importa para a agência, buscamos segurança regulatória”.

Para conseguir a universalização, será preciso construir 200 mil km de rede para distribuição de água e mais de 300 mil km de rede para a coleta do esgoto. Os investimentos devem gerar quase um milhão de empregos, movimentar a economia e provocar ganhos na saúde. A cada R$ 1 investido em saneamento são economizados R$ 4 na saúde, segundo a Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Em Campo Grande (MS), a concessionária Águas Guariroba investiu cerca de R$ 1 bilhão, entre 2005 e 2017. No período, houve uma redução de 91% na taxa de internações por diarreia. Segundo estudo do Instituto Trata Brasil, em parceira com a ABCON e a consultoria Exante, em duas décadas, já descontando os custos da universalização, os ganhos econômicos e sociais trazidos pela expansão dos serviços em suas diversas áreas alcançariam R$ 1,12 trilhão.

As empresas privadas mostram interesse em ampliar os investimentos caso o novo marco afaste a insegurança atual. “Nosso plano de investimentos hoje é de R$ 1,5 bilhão pelos próximos cinco anos”, afirma Gustavo Guimarães, CEO da Iguá Saneamento, concessionária de 18 operações, em cinco estados. “Com a aprovação da Medida Provisória este número será muito maior porque temos interesse em expandir nossa atuação pelo País. A expectativa é de um aumento de dois dígitos no volume anual de investimentos privados”. Para o advogado Ricardo Sanches, especialista no setor, o projeto caminha no sentido correto, mas pode ser contestado. “Sempre se pode ir à Justiça, ainda mais porque a MP deve alterar algumas regras constitucionais”, afirma Sanches. “Os municípios que discordarem podem ir ao Supremo Tribunal Federal. O interessante é que a MP permite que os municípios conversem entre si e decidam em bloco o que fazer.”

RESISTÊNCIA Governadores de 24 estados assinaram uma carta contrária às mudanças. Para eles, o novo marco seria um retrocesso e agravaria as desigualdades, com prejuízo para as empresas estatais. O documento ressalta que, nos últimos 15 anos, os maiores contratos do setor privado se deram através das empresas estaduais e que é um “contrassenso o Governo Federal fazer um programa de estímulos às parcerias, gerenciado pelo BNDES e acabar os Contratos de Programa, que darão suporte a novas parcerias”. Segundo Roberto Tavares, presidente da Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (Aesbe), o principal ponto de discórdia é a possibilidade de dividir os municípios em blocos mais e menos rentáveis. “O setor privado vai disputar os mais rentáveis e as estatais vão ser obrigadas a operar nos menos rentáveis”, afirma Tavares. “Com a carta assinada por 24 governadores, não é inteligente para o governo aprovar o texto como está”, alerta.

O maior temor no grupo contrário é o de que as mudanças emperrem obras já licitadas. “Com a medida, os contratos de programas já existentes ficariam impedidos de serem renovados ou estendidos, prejudicando as obras que estão em andamento”, afirma Wilson Witzel, governador do Rio de Janeiro e um dos signatários da carta. Enquanto os parlamentares não decidem, a crise fiscal impõe restrições aos investimentos e a população segue exposta ao esgoto a céu aberto.