Diz-se que uma mentira contada mil vezes torna-se verdade. Pelo menos na cabeça de quem a profere. E é com essa máxima que o ministro da Economia, Paulo Guedes, tenta evocar uma agenda liberal inexistente, prometendo uma onda de privatizações que nunca sai do papel e apresentando o arrolamento da dívida pública como única forma de evitar a hiperinflação. Com um discurso tão desgastado quanto sua imagem, Guedes, que nunca foi popular entre políticos e a sociedade civil, vê esvair o apoio de um mercado receoso com o que está por vir. Não é sem razão. Ao tocar no assunto do descontrole inflacionário em tom de ameaça – e não como um problema a ser detalhado e resolvido –, ele se mostra incapaz de diferenciar um bom plano de ação do devaneio de um liberal sem poder efetivo. O mercado, evidentemente, reage mal à falácia. E coloca em dúvida a capacidade do ministro de trazer soluções aos entraves econômicos que ameaçam o País também no próximo ano.

Em uma fala durante evento da Controladoria Geral da União, o ministro da Economia afirmou que, caso o governo não consiga arrolar mais a dívida pública, o resultado seria uma hiperinflação. Na literatura econômica, isso ocorre quando o principal conjunto de preços de um país aumenta mais de 50% em um mês, algo que ocorreu no Brasil nos anos 1980, mas deixou de ser uma ameaça desde a criação do Plano Real, em 1994. Na avaliação do economista Armando Castelar, coordenador de Economia Aplicada do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), a fala de Guedes é alarmista e não retrata a realidade.

O risco, de acordo com o acadêmico, é que, caso a dívida continue sua trajetória crescente, o Banco Central possa cair em uma situação de “dominância fiscal” e, dessa forma, ficar impossibilitado de aumentar os juros para segurar a inflação. “Isso porque, caso os juros subam, a dívida pública dispara”, disse Castelar. Ex-Secretario do Tesouro Nacional e hoje diretor do Asa Investments, Carlos Kawall recorda que R$ 700 bilhões da dívida pública, ou 10% do PIB, vencem até maio de 2021. “A situação é grave”, afirmou Kawall. Para ele, a ação do governo, contrariando a própria equipe econômica, contribui para aumentar, e não diminuir, a incerteza a respeito da trajetória fiscal. “Nesse sentido, o alerta deve ser levado a sério”, disse.

Se a questão fiscal preocupa, a distância entre a taxa atual de inflação, estacionada entre 3,5% e 4% ao ano, e uma hiperinflação acima de 50% ao mês dificilmente seria percorrida em pouco tempo. Essa é a avaliação de Sérgio Andrade Góes, doutor em economia fiscal e ex-secretário da Fazenda do Estado de São Paulo. “Há uma sensação de alta nos preços, porque os alimentos estão subindo, mas não é algo que foge muito da meta de 2020”, afirmou. Para ele, a alta do barril de petróleo também pode elevar os preços nos próximos meses, mas em um movimento global e atrelado ao cenário externo. “As ameaças (de Guedes) não ajudam. Se houvesse um problema exposto de descontrole de preços, o ministro deveria chegar com um plano, não com um devaneio”, disse. O vilão da economia neste momento, segundo Góes, é a falta de capacidade de captar recursos que a União enfrenta. “Para mudar isso, é preciso agir mais e falar menos”, afirmou.

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“As privatizações não vão gerar receita significativa na dinâmica da dívida, pois o déficit fiscal virá todo ano. Privatizar adia o problema, mas não o resolve” Armando Castelar Economista do IBRE-FGV.

PRIVATIZAÇÕES Frustrado por não ter conseguido privatizar nenhuma estatal em dois anos de governo, Guedes resolveu traçar novas datas para seus objetivos. Em evento na terça-feira (10), ele cravou que, até o final de 2021, ao menos quatro empresas sairão do controle do governo. Entre as escolhidas, estariam Correios, Eletrobras, Pré-Sal Petróleo S.A. e o Porto de Santos. Apesar da fala, o ministro admitiu que os planos não saíram como esperava. Desde que o empresário Salim Mattar, ex-homem forte do governo no plano de privatização, deixou a Secretaria Especial de Desestatização, o assunto esmoreceu. “Mas até dezembro, esses quatro projetos devem estar feitos. Estamos propondo isso para o Congresso nos próximos 30 a 60 dias”, disse Guedes.

No Congresso, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, já deixou claro o desejo do Legislativo em avançar com reformas, mas culpa a morosidade dos projetos vindos do Executivo. Para Maia, qualquer investida para derrubar o Teto de Gasto não terá espaço na Casa, cabendo ao governo encontrar formas de viabilizar a situação fiscal nos próximos anos.

NA MIRA Maior terminal da América Latina, o Porto de Santos é uma das apostas de Guedes para arrecadar mais e abater a dívida pública em 2021. (Crédito:Avener Prado)

Durante a campanha presidencial, Guedes usava números expressivos para defender sua agenda liberal. Segundo ele, seria possível, no primeiro ano de mandato de Bolsonaro, arrecadar R$ 1 trilhão com privatizações, vendas de imóveis e concessões. Desde o ano passado, a venda da Eletrobras, Correios, PPSA e Porto de Santos são tratadas como galinha dos ovos de ouro, mas o projeto nunca saiu do papel. Para o economista Gil Castello Branco, secretário-geral da ONG Contas Abertas, é possível que nenhum desses avance. “Pelo andar da carruagem, não acho ser possível que o governo aprove nada este ano. Nem reforma nem privatização. O fato é que eles não saem da fase de ‘modelagem’ do projeto. Ficam só na intenção”, disse Castello Branco. “É curioso vê-los repetir tudo o que disseram quando assumiram o País”.

Ao se envolver com projetos de privatização de empresas como Correios e Eletrobrás, o ministro também ignora o fato de serem companhias com obrigações constitucionais, com massa de trabalhadores sindicalizados e apelo popular. Professor de gestão de políticas da Universidade de São Paulo (USP), Edison Beltrão afirma que são empresas com obrigações para além do lucro. “São estatais que atuam em locais não rentáveis por obrigação Constitucional, o que deixaria de acontecer numa privatização”, disse.

ALVO DEFINIDO Plano de privatizar os Correios é antigo, mas função social do equipamento público pode atrasar ainda mais a agenda do ministro Paulo Guedes. (Crédito:Eduardo Matysiak)

E se as empresas escolhidas por Guedes são espinhosas, talvez não sejam nem de longe uma tábua de salvação. Para Castelar, da FGV, a adoção desse tipo de medida para conter o endividamento é positiva. Mas, sozinha, não faz milagre. “Privatização não vai gerar receita significativa na dinâmica da dívida. O déficit fiscal vem todo ano. Privatizar adia o problema, mas não o resolve”. Adiar os problemas parece ser o mantra dos últimos governos brasileiros. Seja na pedalada, como fez Dilma Rousseff, seja com devaneios e cortinas de fumaça, como fazem Guedes e Bolsonaro. O que pode ser ainda pior.