O termo caixa-preta, usado para designar um equipamento inserido na cabine de aeronaves que registra todas as ações feitas pelo piloto, ganhou conotação de caixa de Pandora desde a eleição de 2018. Nos palanques, o então candidato à Presidência Jair Bolsonaro dizia que queria abrir “a caixa-preta do BNDES”. O objetivo era colocar à luz eventuais esquemas de corrupção que envolveriam financiamentos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social a empresas brasileiras, mesmo com especialistas de todo o espectro político afirmando a excelência do corpo técnico da instituição. Depois de um ano o Brasil conheceu a resposta: nada de errado foi encontrado. E a conta para sair do nada e chegar a lugar algum provocará um espeto de R$ 42,3 milhões aos cofres públicos, valor a ser pago para a auditoria contratada.

A investigação, a cargo da Cleary Gottlieb Steen & Hamilton, começou ainda no governo Michel Temer e com Maria Silvia Bastos à frente do BNDES, em 2018. Custaria R$ 23,2 milhões, cifra que seguiu crescendo à medida que foi avaliando contratos firmados entre o banco e o grupo J&F, dono da JBS. Já na gestão Bolsonaro, a coordenação do caso coube a Gustavo Montezano, atual presidente do BNDES. Quando assumiu, em julho, ele disse que abriria a tal caixa-preta em dois meses. Levou três vezes mais. Sobre o pastelão, foi sucinto: nada encontrou e nada havia a esclarecer. Isso elevou a pressão em cima de Montezano. Por um lado, o presidente Bolsonaro afirmou que havia “coisa esquisita aí”, quando questionado sobre o resultado da auditoria. Na outra ponta, o Tribunal de Contas da União (TCU) cobrou explicações, em até 20 dias, sobre o alto custo da investigação.

Para tentar pôr panos quentes, Montezano convocou a imprensa quarta-feira 29 e disse: “Como você explica para uma população que paga altos impostos, que não tem escola, não tem saúde, não tem segurança, que a gente emprestou R$ 20 bilhões para um dos maiores esquemas de corrupção da história, com o dinheiro deles, e não teve nada de ilegal? A verdade é que a gente concluiu que não houve nada de ilegal. A gente construiu leis, normas e aparatos legais e jurídicos que tornaram legal esse esquema de corrupção.” Espera-se que o BNDES não contrate outra auditoria para explicar o que seria uma corrupção dentro da lei.

Campeãs Nacionais Linha de produção da JBS, empresa que teve contrato do BNDES avaliado por auditoria que nada descobriu. À esquerda, o presidente do banco, Montezano, tentando explicar por que não havia caixa-preta. (Crédito: Pedro Ladeira)

Muito antes da eleição de 2018, a questão do BNDES já havia sido aventada por críticos aos governos petistas. Foi no governo Lula que se criou o programa de campeãs nacionais, que visava fomentar empresas brasileiras para que ultrapassassem as fronteiras e se transformassem em forças globais. E assim foi. O banco de fomento, que foi criado por Getúlio Vargas, costurou recursos para gigantes como Braskem, Eletrobras, JBS, Light, Odebrecht, Petrobras, Sabesp e TIM. “O BNDES ficou no epicentro de um problema de corrupção, mas não se pode condenar por livre-associação, é preciso provas”, diz o economista Roger Duprat, que é consultor da Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) dentro do Congresso Nacional.

Comandante do banco entre 2017 e 2018, o economista Paulo Rabello de Castro publicou o Livro Verde, um balanço do banco entre 2001 e 2016. Na ocasião declarou: “Ou sou um completo idiota ou não existe ‘caixa-preta’ no BNDES”. Para João Maria de Melo, ex-conselheiro do Cade, que atuou no órgão entre 1998 e 2001, essa tara com o BNDES se dá porque o banco, com aval do Supremo Tribunal Federal (STF), passa à margem da Lei de Acesso à Informação. “Várias vezes o TCU tentou auditar as contas do BNDES, mas por causa do sigilo bancário, nunca conseguiu.” E foi isso que deu combustível para o candidato à Presidência em 2014, Aécio Neves (PSDB), falar de um “bolsa empresário”, mencionando empréstimos feito com juros “de mãe”. De fato, a taxa média era menor que a Selic.

FRITANDO LEVY Diante dessa obsessão em achar corrupção no BNDES, o presidente Bolsonaro fez de Eduardo Levy, então presidente do banco e que havia sido também ministro da Fazenda da presidente Dilma Rousseff, o alvo de sua primeira fritura pública. Depois de Levy sinalizar que não havia indícios de fraude nos empréstimos, a situação do economista ficou insustentável, já que ele foi aceito por pressão do ministro da Economia, Paulo Guedes. Levy pediu demissão após Bolsonaro dizer que estava “por aqui” com ele. Foi então que Montezano assumiu.

Com caixa-preta ou de Pandora, o fato é que o banco serviu para internacionalizar empresas e ajudou a manter o crescimento do PIB mais elevado. E de quebra ainda tornou o BNDES acionista de companhias que se valorizaram na B3, garantindo bons retornos – inclusive agora, quando se desfaz dessas participações e engorda o caixa do governo. Estudo de Breno Albuquerque, doutor em Economia e ex-gerente de Data Science do BNDES, mostra que a taxa média de investimento no Brasil, em relação ao PIB, desde 1990 não ultrapassa os 19%, sendo os picos atrelados aos anos de maior liberação de recursos do banco. “Isso quer dizer que o investimento dessas empresas teria sido ainda menor se não houvesse o apoio do BNDES.” O máximo que a caixa-preta continha estava mais para boa notícia. Exceto pelos R$ 42,3 mihões…