Para o especialista na gestão de fundos de dívidas em atraso, a atuação da sociedade civil vai disciplinar o governo que insiste em gastar além de sua capacidade de se financiar.

O advogado e empresário Guilherme Ferreira, sócio da Jive Investiments, criou sua empresa em um momento de crise. Ex-diretor do banco de investimentos americano Lehman Brothers no Brasil, liquidado em 2008 no que seria o início da crise do subprime, Ferreira e seus sócios fundaram a gestora para participar do leilão de ativos que se seguiu à liquidação da instituição financeira em que trabalhavam. Desde então, eles se especializaram em gerir fundos que compram dívidas em atraso, conhecidas como “distressed debt” e ativos imobiliários sem liquidez. Ferreira falou com a DINHEIRO.

DINHEIRO — Boa parte do seu trabalho é avaliar a qualidade do crédito e a capacidade de pagamento das empresas brasileiras. Como está o cenário para o segundo semestre de 2022?
GUILHERME FERREIRA — Nossa percepção é de um futuro mais difícil e de maior incerteza do que no passado recente. Essa avaliação é baseada na situação da economia. Imediatamente após o fim da pandemia, o governo federal fez a coisa certa. Usou um espaço fiscal que existia para mitigar os efeitos da Covid-19 sobre a economia. Porém, isso continuou em 2022. E a economia não demonstra o mesmo vigor. Está sendo prejudicada por eventos extraordinários, pela guerra na Ucrânia e a forte queda dos mercados acionários. E isso sem citar a dificuldade adicional da eleição.

Como a eleição preocupa o mercado?
O que preocupa não é o pleito em si, mas o impacto de longo prazo das medidas políticas e econômicas que estão sendo tomadas com vistas à eleição. Foram votados vários auxílios. Auxílio Brasil, auxílio caminhoneiro. Não quero entrar no mérito se esses programas eram ou não necessários. O que me preocupa é que foi preciso recorrer a mudanças na Constituição e a estados de emergência para garantir que esses pagamentos entrassem no orçamento. Como cidadão, me preocupa o fato de o governo estar contratando despesas de curto prazo que serão custeadas por receitas futuras, que não sabemos se vão existir.

Isso pode aprofundar a crise?
Eu sou um otimista cauteloso. O mercado é capaz de impor uma certa disciplina ao governo. Acredito que uma sociedade civil forte e atuante é um contrapeso importante a essa vontade do governo de gastar além de sua capacidade de se financiar. E também há o medo da inflação.

“O que preocupa é o impacto de longo prazo das medidas políticas e econômicas que estão sendo tomadas com vistas à eleição” (Crédito:Paulo Sergio)

Por que o governo deveria temer a inflação?
Quando há indisciplina fiscal, o governo emite muita moeda e faz muita dívida. O déficit público aumenta. O câmbio reage mal: o dólar se aprecia em relação ao real. Isso torna as exportações mais competitivas. Os exportadores compram aqui para mandar para o exterior. Falta produto no mercado interno e os preços sobem. Outro efeito é elevar os preços dos bens calculados pelo dólar. Tudo isso pressiona a inflação, que é algo tremendamente impopular. A população detesta isso. O povo não tem paciência com inflação alta. E isso deve convencer qualquer governo a se manter nos limites da disciplina fiscal.

Isso afetou os negócios da sua empresa?
Para gestores de fundos como nós, que investem em ativos problemáticos, essa piora do cenário é uma oportunidade, nos permite investir mais e melhor. Em 2021, quando havia abundância de recursos e o mercado estava bastante ativo, foi mais difícil fazer negócios. Fazemos fundos de ativos problemáticos e ilíquidos. Poucos gestores fazem isso. No passado recente, porém, com os juros baixos e a liquidez abundante, a perspectiva de um ganho acima das demais alternativas de mercado atraiu concorrentes. Isso aqueceu a demanda por esses ativos e elevou os preços. Agora a situação está mais favorável.

Quanto mais favorável?
Bastante. A comparação entre dois números mostra isso. Uma de nossas principais atividades é a compra de imóveis envolvidos em alguma questão judicial. Esse negócio atraiu muitos concorrentes no ano passado. Os preços subiram e a rentabilidade potencial do investimento diminuiu. Com isso, havia menos imóveis interessantes à disposição. Entre janeiro e julho de 2021 nossos fundos conseguiram adquirir R$ 700 milhões nesses imóveis. Em 2022, nos mesmos sete primeiros meses do ano, as aquisições foram de R$ 1,5 bilhão, mais que o dobro. E o valor poderia ter sido maior, mas literalmente faltaram braços. Não temos pessoal suficiente para analisar todas as oportunidades que apareceram.

Os juros sobem, a Bolsa cai e o dólar está acima de R$ 5,00. Isso afeta seus fundos?
Os fundos de nossa gestora não se comportam da mesma maneira que os índices do mercado financeiro. Em termos técnicos, dizemos que nossos fundos não são correlacionados com o Ibovespa ou com os juros. Assim, a rentabilidade desses investimentos não depende de a Bolsa estar em alta ou em baixa. Isso é uma vantagem para nossos clientes.

Por quê?
Eles são investidores institucionais, como fundos de pensão ou fundos soberanos, que administram dinheiro de países. Podem gerir recursos de universidades, os chamados “endowments”, formados por doações a essas instituições de ensino. Dizemos que eles investem para sempre. Pensam em horizontes de 20, 30 ou mesmo 40 anos. Com esse perfil, uma boa gestão de riscos exige aplicações financeiras que sejam independentes dos movimentos de curto prazo do mercado.

Como os investidores internacionais avaliam o risco Brasil?
Estamos muito distantes da situação de 2010, tão bem retratada naquela capa da revista The Economist, que trazia a imagem do Cristo Redentor decolando como um foguete. Desde então o superciclo de alta de preços das commodities se encerrou. E houve uma quantidade surpreendente de erros, cometidos em série pelos governos desde então. E eu quero dizer todos os governos, sem exceção. Essa sucessão de más decisões veio reduzindo o interesse dos investidores internacionais. Que já investiam pouco no Brasil de qualquer maneira.

Qual é a participação dos ativos brasileiros nos portfólios desses investidores?
O Brasil nunca foi um dos destinos mais relevantes e isso não mudou. Os números variam e dependem um pouco dos critérios de análise, mas podemos considerar algo ao redor de 2% do portfólio total dos investidores institucionais. É pouco. De cada US$ 100 investidos, só US$ 2 estão em ativos brasileiros. No entanto, é possível ver o lado positivo disso. Estamos falando de entidades com dezenas de trilhões de dólares em recursos. Se o percentual subir de 2% para 3%, ele vai continuar pouco relevante em termos relativos, mas isso vai representar um aumento de 50% no total aplicado no Brasil. São dezenas de bilhões de dólares. Mais do que as necessidades de investimento da infraestrutura brasileira,
por exemplo.

“Quando há indisciplina fiscal, o dólar se aprecia e isso pressiona a inflação. Falta produto no mercado interno e os preços sobem” (Crédito:Vandro Leal)

Onde esse dinheiro está investido atualmente?
A maior parte dos recursos é americana ou europeia, e os gestores investem nos Estados Unidos e na Europa mesmo. É o chamado “home bias”, ou viés doméstico: colocar seu dinheiro no que está fisicamente ou culturalmente perto de você. Em seguida vem a China, que é o segundo mercado mais interessante. A Rússia vinha atraindo muito capital, principalmente com a alta dos preços do petróleo anterior à guerra, mas a invasão da Ucrânia reduziu bastante o interesse.

O atual presidente não ajuda a trazer recursos para o Brasil?
Não sou analista político. Minha avaliação é como gestor de recursos e procuro imaginar como os investidores internacionais pensam. Considero que o presidente de um país, qualquer país, é seu principal profissional de marketing. Ele tem de ser o garoto propaganda por excelência. O atual presidente, por méritos ou deméritos próprios, não vem sendo um garoto propaganda eficaz. Sua acolhida não é das melhores. A percepção internacional com o ex-presidente Lula talvez fosse melhor. Mas, para quem toma decisões de investimento, essa é uma questão
secundária.

O que interessa para esses profissionais na hora de tomar essas decisões?
Os gestores de recursos estrangeiros, em especial os responsáveis por investimentos institucionais, não se interessam muito por percepções e impressões. Há pouquíssimo espaço para subjetividade. As decisões desses profissionais são baseadas em análises e números. Qual a trajetória para o Produto Interno Bruto (PIB)? Qual o risco de inadimplência e o risco cambial? Há probabilidades de o governo não honrar seus compromissos? É isso que interessa.