À base de bala, berro e bagunça, um Brasil de farda saiu da caserna na semana passada e colocou as botas no meio da rua. No vale tudo por melhores salários, em Recife na terça-feira, 24, houve tiroteio, auge de um conflito entre policiais militares amotinados e em serviço que deixou cinco feridos e chamuscou as paredes do palácio do governo. A rede de tevê americana CNN enviou para o mundo todo as imagens da revolta. No dia seguinte, a brasileira Globo News transmitiu em rede nacional uma passeata de mulheres dos militares do Exército, Marinha e Aeronáutica diante da Vila Militar, no bairro de Piedade. Elas vocalizaram uma reivindicação da corporação das três Armas, cuja pressão por um aumento de 30% nos vencimentos foi encampada primeiro pelo comandante do Exército, general Gleuber Vieira, e em seguida pelo ministro da Defesa, o civil Geraldo Quintão. ?O que nos irrita e revolta é a disparidade com os aumentos do Judiciário?, disse à DINHEIRO, na quarta-feira, 25, o general Leônidas Pires Gonçalves, ex-ministro do Exército, cuja agenda é repleta de palestras para auditórios militares. Parecia advinhar. No dia seguinte, o Supremo Tribunal Federal confirmou um reajuste de 11,98% nos salários dos funcionários do Judiciário. ?Nos últimos tempos, eles tiveram uns 50% de aumento, e nós, nada?. Na manhã da sexta-feira, 27, homens da Polícia Rodoviária Federal provocaram um congestionamento-monstro na entrada da maior cidade do País, São Paulo, ao fecharem quatro das cinco pistas da Via Dutra, que faz a ligação com o Rio de Janeiro, numa operação padrão de fiscalização cujo pano de fundo era a cobrança de uma gratificação por operações especiais capaz de dobrar o salário-base da corporação, de R$ 1 mil.

Nos altos escalões civis de Brasília, a expressão ?crise militar? é execrada. Dali, tudo parece calmo. Duas semanas atrás, rumores de que o presidente Fernando Henrique estava decidido a exonerar o general Gleuber, por sua insistência na defesa da melhoria dos soldos das Forças Armadas, foram prontamente desmentidos. Uma reunião em torno do chefe do Exército de todos os 155 generais brasileiros foi minimizada. A ida de FHC à Amazônia, onde a um só tempo prestigiou o próprio general e o ministro Quintão, durante encontro dos ministros da Defesa da América do Sul, também entrou na conta dos gestos de rotina do cargo presidencial. Sobre a revolta da PM de Pernambuco, ficou combinado que o assunto é da esfera do governo do Estado e do Comando Militar do Nordeste, responsável pela escalação de mais de 300 militares para fazer o policiamento na Grande Recife enquanto a greve durar. Pelo sim, pelo não, economistas do governo já fazem contas que concluem por um aumento de gastos da ordem de R$ 300 milhões para fazer frente ao aumento que os militares querem. ?O governo, infelizmente, não tem uma política de segurança?, critica o deputado federal José Genoíno, do PT, considerado no Congresso um especialista em questões militares. ?Não consegue se antecipar a nada, apenas atende a pressões.?

Pressão. Em relação ao Exército, Marinha e Aeronáutica, a tendência é que essas pressões aumentem. A tropa, como costuma lembrar o general Gleuber, está endividada. Na sede de um dos maiores comandos do País, o do Sudeste, em São Paulo, o local mais freqüentado pelos militares é, atualmente, a sala da Fundação Habitacional do Exército, onde fica a Poupex ? Associação de Poupança e Empréstimos. ?Nossa finalidade principal é incentivar a família militar a poupar recursos para comprar a casa própria?, diz o coronel da reserva Hélio Pinheiro, chefe do escritório. ?Mas nos últimos tempos, o que mais temos feito é conceder empréstimos pessoais para que o nosso pessoal possa enfrentar os compromissos financeiros de cada mês.? Até a semana passada, o escritório paulista da Poupex já havia emprestado este ano R$ 20 milhões a mais de seis mil militares e pensionistas que procuraram suas três mesas de atendimento. Num só dia de setembro foram concedidos 110 empréstimos no período de expediente. A atração especial são os juros de 2,84% ao mês, inferiores aos da rede bancária, e a possibilidade de, após o pagamento de um terço do empréstimo, poder contrair outro. ?Muitos companheiros usam desse expediente, desde que não comprometam 30% de sua renda bruta com os pagamentos exigidos?, conta o coronel Pinheiro. Ele conhece muitas histórias de dificuldades financeiras da tropa, narradas por carta, fax e pessoalmente, e diz que a novidade, agora, é a procura cada vez maior pelos empréstimos dos militares da Aeronáutica.

O governo alega que tem, sim, contemplado as Forças Armadas com recursos cada vez maiores. O orçamento dedicado ao Exército, Marinha e Aeronáutica cresceu 34% entre 1995 e 1999, saltando de R$ 9,3 bilhões para R$ 12,6 bilhões no ano passado. O dinheiro foi suficiente para a compra de novos equipamentos e modernização de algumas instalações. O problema é que as remunerações continuam baixas. Um soldado, por exemplo, recebe um soldo de R$ 50,40. Com gratificações, seus vencimentos líquidos ficam em R$ 131. Para um coronel com 35 anos de serviço, o salário líquido não chega a R$ 5 mil. A aposta, agora, é na nova Lei de Remuneração dos Militares, que acaba de chegar ao Congresso. Pela incorporação de gratificações aos salários, pode representar um aumento médio de 25% para os mais de 200 mil militares na ativa. No momento em que questões de defesa nacional até há pouco arquivadas voltam a ser debatidas, como as recentes discussões sobre reflexos no Brasil do Plano Colômbia, montado pelos Estados Unidos para combater a produção de droga no país vizinho, muitos militares acreditam que a hora é propícia para arrancar do governo um bom aumento. ?Quando o cobertor é curto, o estadista tem de saber quais são as suas prioridades?, alfineta o ex-ministro Leônidas.

 

Pensionistas. Enquanto para a tropa a remuneração vai cada vez mais sendo considerada insuficiente, para quem se aposentou como militar a situação é diferente. As aposentadorias são pagas de acordo com o último salário recebido e, assim, costumam ser bem mais gordas do que a da maioria dos cidadãos comuns. No caso das pensionistas das Forças Armadas, a situação ainda é mais discrepante. Viúva de um general de Divisão do Exército, a pensionista Mariana Moreira, de 70 anos, vive com uma renda líquida de R$ 4,2 mil por mês. Com esse dinheiro, ela tornou-se o caixa da família. ?Essa pensão, realmente, daria muito bem para eu viver tranqüila?, disse ela em seu confortável apartamento no bairro de classe média alta do Leblon, no Rio de Janeiro, a Luciano Dias, de DINHEIRO. ?Só que com essa crise de desemprego, estou tendo que ajudar meus dois filhos e até meus netos, que passam por dificuldades.? Ela conhece outras mulheres na mesma situação. ?Apesar da renda não ser baixa, quase nenhuma pensionista vive bem, porque a maioria é muito procurada por familiares.? Nas outras fardas, a distorção se repete. Na Polícia Militar, onde um soldado pode ter soldo de R$ 75, motivo da greve em Recife, há coronéis aposentados com pensões superiores a R$ 12 mil. ?Enquanto não houver transparência na discussão sobre a organização militar como um todo, uma crise inesperada sempre vai estar à espreita?, acredita o deputado Genoíno. É não pagar para ver.