Quem já passou dos 30 anos, preserva uma boa memória e consumia axé músic dos anos 1990 deve se lembrar do hit Xibom Bombom, sucesso das rádios FM do grupo As Meninas. Entre passinhos e rebolados, a letra criticava a desigualdade social e o aumento da pobreza no País. Enquanto os ricos ficavam cada vez mais ricos, os pobres ficavam cada vez mais pobres. A banda batizou esse fenômeno de “cadeia hereditária”. Mais de duas décadas depois, a música se tornou uma quase desconhecida, mas profética. O problema da desigualdade nunca foi tão atual. Segundo o Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), mesmo com o crescimento da economia na casa de 4% neste ano, a renda per capita vai fechar abaixo do período pré-pandemia e no pior patamar em quase dez anos. Em outras palavras, o PIB pode até aumentar, mas pode ser que isso não signifique nada para você.

O Ibre/FGV calcula que o PIB per capita irá crescer 4,1% em 2021. Com isso, o brasileiro deverá terminar o ano ainda 0,9% mais pobre na comparação com 2019 e 7,5% abaixo da máxima histórica de 2013. Para 2022, a projeção é de um avanço de apenas 0,8%, o que deixaria o indicador ainda 0,1% inferior ao nível anterior à Covid-19. Para o economista-chefe do banco BV, Roberto Padovani, o Brasil já superou a recessão do ano passado em níveis de produção, mas ainda não retomou o ritmo anterior. “Diferentemente da recessão de 2014, a de 2020 foi aguda e rápida. Durou dois trimestres”, disse Padovani. “Tivemos uma recessão em cima da outra, nos recuperamos da última, mas ainda não alcançamos os níveis de sete ano atrás.”

Nas projeções da FGV, a população brasileira só deverá retomar o nível de riqueza de antes da pandemia a partir de 2023. Já a recuperação do PIB per capita de 2013, o mais alto já registrado no País, ainda poderá levar quase uma década, de acordo com a economista Silvia Matos, coordenadora do Boletim Macro do Ibre/FGV. “O risco de um cenário pior para o ano que vem é mais provável do que de um aumento nas projeções para o PIB, o que significará também taxa de crescimento muito baixa do PIB per capita”, afirmou Silvia. Segundo ela, será “com certeza” abaixo de 1%. “Ou seja, ainda não recupera o patamar de 2019”, disse a economista. Em 2020, o PIB despencou 4,1%, enquanto o PIB per capita tombou 4,8%, a maior queda já registrada em 25 anos. Em cifras, o resultado ficou em R$ 35.172,00 por habitante no ano.

O levantamento leva em conta as últimas projeções do Ibre para o crescimento da economia brasileira. Em setembro, o instituto reduziu sua projeção para o avanço do PIB total de 5,2% para 4,9% em 2021. Já a previsão para o crescimento de 2022 caiu de 1,6% para 1,5%. A economista garante que a estimativa já considera também um crescimento populacional menor, o que em tese é um fator de pressão a menos sobre o PIB per capita. “Na década anterior, a média de crescimento populacional por ano foi de 0,83%. Agora, nesta década, a gente prevê que o crescimento será de 0,60% ao ano”, disse Silvia. E mesmo essa previsão pode mudar. “O que também pode ser revisto até para baixo dependendo do resultado do Censo”, afirmou. Com uma taxa de crescimento econômico de 3% ao ano a partir de 2023, o PIB per capita retornaria ao pico de 2013 a partir de 2025. Ou seja, o retorno ao patamar de antes da grande recessão de 2014-2016 ocorreria após, no mínimo, 12 anos.

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“Tivemos uma recessão em cima da outra, nos recuperamos da última, mas ainda não alcançamos os níveis de sete ano atrás” Roberto Padovani Economista-chefe do Banco BV.

CONJUNTURA As perspectivas pouco otimistas para a economia se sustentam na inflação quase fora de controle, na ameaça iminente de crise energética e na corrosão da imagem do Brasil mundo afora. As projeções econômicas do mercado financeiro para a economia têm piorado semana após semana, segundo o relatório Focus, do Banco Central, que colhe a avaliação de uma centena de economistas. Hoje, os analistas estimam que o PIB deve crescer 5,04% em 2021 e apenas 1,57% em 2022. No começo do ano, a previsão era de alta de 2,5% no ano que vem.

Depois de o PIB do Brasil avançar 1,2% no primeiro trimestre, a recuperação perdeu fôlego entre abril e junho, mas deve apresentar alta em 2021. “Mas o que é mero retorno à normalidade não é crescimento econômico propriamente dito”, disse Silvia. “Atualmente, o espaço para o aumento do consumo das famílias é muito baixo”, afirmou a economista. E é nesse cenário de dificuldade e de aumento da disparidade social que os brasileiros, principalmente os mais pobres, vão dançando conforme a música. E o motivo todo mundo já conhece…