Há alguns anos economistas da esquerda e da direita já defendiam que o programa Bolsa Família precisaria se adaptar aos novos tempos. A revisão dos beneficiários, o ajuste do recurso e até sua finalidade social era questionada dentro da realidade atual do Brasil. Sob essa ótica, a decisão do governo Jair Bolsonaro de ampliar em ao menos 50% o valor do benefício, unificar outras bolsas e elevar o número de famílias poderia ser uma boa notícia. Mas não é. Para financiar parte do programa o governo ensaia uma pedalada nos precatórios e, somado a outras ações que visam exclusivamente o pleito de 2022, precisará elevar impostos para não cometer o erro número 1 dos endividados: usar o cartão de crédito para pagar a conta de luz.

Para elucidar o tamanho do problema, precisamos entender em qual contexto o governo se comprometerá em elevar de R$ 34 bilhões para R$ 53 bilhões as despesas com o Auxílio Brasil. Uma renúncia fiscal de cerca de R$ 30 bilhões caso a reforma tributária avance nos moldes atuais, uma demanda de R$ 7 bilhões para recuperação de obras e estímulo ao emprego, outra renúncia fiscal, que pode se aproximar de R$ 100 bilhões, com o novo Refis. Tudo isso enquanto, em uma previsão otimista do próprio governo, a arrecadação deve avançar 8% com a retomada econômica, o que representa a injeção de R$ 110 bilhões aos cofres públicos. Para o adicional do Bolsa Família, renúncias e Refis o Brasil precisaria de pelo menos R$ 136 bilhões — segundo o Unifisco, caso seja aprovada a tributação de lucros e dividendos, pauta que não chegou ao Congresso, seria possível arrecadar R$ 60 bilhões. Faltariam R$ 76 bilhões para fechar a conta. Sem o dinheiro, sobram duas soluções: elevar a arrecadação por meio de impostos ou aumentar o endividamento público, que ano que vem deve chegar a 96% do PIB.

Um dos maiores problemas do Auxílio Brasil é que o governo não revelou sua fonte de financiamento. Para Tereza Campello, ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome do governo Dilma Rousseff, essa falta de clareza torna o programa ainda mais confuso. “Anunciar sem apresentar o lastro é uma irresponsabilidade do ponto de vista fiscal”, disse a ex-ministra, que também é economista. Em uma entrevista recente, Bolsonaro chegou a citar um fundo de privatizações como um potencial financiador do programa. “Ou seja, não é um dinheiro continuado. Como você constrói um programa para 100 milhões e diz que o dinheiro vem da desestatização? É irresponsável”, afirmou Tereza.

NAS MÃOS DO LEGISLATIVO Presidente Jair Bolsonaro entrega texto do novo programa de transferência de renda para os presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco. (Crédito:Marcos Correa)

E se Bolsonaro se contenta com o “talvez” das privatizações, conversas no Ministério da Economia dão conta de que Guedes já tem alguns planos na manga. Claramente o ministro não é do tipo que pagaria as parcelas de um carro considerando que todo mês conseguiria vender livros ou discos usados. Esse tipo de lógica não faz seu tipo. Aí entra o “pulo de Guedes”. Ele engole todos os sapos do presidente e foca a atenção para depois da eleição. No próximo ano, Guedes dará um jeito de sustentar todos os rompantes populistas que Bolsonaro planeja. Tenta desviar das cascas de banana jogadas pelo Congresso e, se o plano de reeleição der certo, entra em 2023 com um teto de gastos rachado, a dívida pública um pouco mais alta e o argumento perfeito para criar um imposto de transações digitais. Se por acaso o plano de reeleição não for exitoso, o problema deixa de ser dele.

OUTRAS ENCRENCAS E se a fonte de financiamento é um problema que a equipe econômica precisa encarar, caberia ao ministro da Cidadania, João Roma, pensar se o programa, além de mais caro, também é mais eficiente do que existia até agora. E a resposta pode decepcionar. O economista Paes de Barros, pesquisador do Insper e uma das cabeças por trás do Bolsa Família, afirma que pode haver boa intenção do governo em enfrentar a desigualdade social, mas os problemas que existiam no Bolsa Família seguem intactos. “É preciso organizar e otimizar as filas. Focar o benefício onde ele é necessário”, disse. O outro problema é o “ensinar a pescar”. Além de dinheiro para subsistência, deve-se incluir o cidadão no mercado de trabalho. “Essa inclusão se dá pela oferta de oportunidades, intermediação de mão de obra, assistência técnica, apoio à comercialização. E isso não há.”

Quem também entende que o caminho do governo, além de caro, é disfuncional é a ex-ministra Tereza. Segundo ela, os 50% de aumento anunciado pelo governo apenas recupera a falta de reajuste do programa desde 2015. “Vale lembrar que em 2014 havia a menor taxa de desemprego da história. Hoje temos 15 milhões de desempregados e mais os 6 milhões que nem sequer estão procurando emprego. É outro cenário.” Um desemprego de dois dígitos que começou no governo Dilma, é fato, mas que Bolsonaro tem sido incapaz de resolver.

Em sua defesa, o ministro da Cidadania afirmou na entrega da proposta ao Congresso Nacional que trata-se de um programa de inclusão. “Ele busca também promover seu desenvolvimento de forma a apresentar a essas pessoas políticas mais eficazes de emancipação”, disse, fazendo menção aos bônus que serão oferecidos à crianças e adolescentes que se destaquem nos esportes ou na ciência. Isabelly Castro, economista social e pesquisadora da Unicef vê que esse bônus pode ser chave para mais distorções. “Cobrar de famílias de alta vulnerabilidade um desempenho acima da média nos esportes e ciência é absurdo”, disse. Outra critica é sobre a necessidade de inserção no Cadastro Único para receber o benefício. “É um sistema analógico, pouco funcional e que depende de muitos avais de humanos, o que abre margem para mal uso do benefício.”

Ignorando seu passado de críticas ao Bolsa Família e ao “voto de cabresto do PT” (com falas como “no Nordeste você não acha uma pessoa para trabalhar na sua casa, porque se ela for trabalhar, perde o Bolsa Família”), Bolsonaro se limitou a dizer que o programa visa a inserção de pessoas no mercado de trabalho. E só. Mais um típico projeto bolsonarista.