No dia 1° de outubro do ano passado, as ações da Cemig valiam R$ 7 na Bolsa de Valores. Com o estado de Minas Gerais quebrado e com a maior dívida pública do País — só nos últimos 2 anos, Minas deixou de pagar R$ 6 bilhões de débitos —, a estatal de energia não gozava de muita confiança do mercado. Exatamente uma semana depois, no dia 8, os papéis da empresa já estavam custando R$ 10,20, o que significa uma impressionante alta de quase 47%, em apenas cinco dias úteis. Hoje, 11 meses depois, as ações valem em torno de R$ 15, ou seja, mais do que o dobro de outubro de 2018. Essa admirável valorização, no entanto, esconde algo que deve gerar um grande problema: a expectativa de que a Cemig seja privatizada. As ações da companhia só passaram a subir tanto depois que o candidato Romeu Zema, do Partido Novo, que disputava o cargo a governador de Minas Gerais, começou a aparecer com força nas pesquisas, no final de setembro do ano passado.

Tendo como uma das promessas de campanha justamente a privatização da Cemig, entre outras estatais, Zema surfou na onda bolsonarista e do anti-petismo e acabou disputando o segundo turno das eleições com o senador Antonio Anastasia, do PSDB. Para animar ainda mais o mercado, o então governador Fernando Pimentel, do PT, sofreu uma derrota acachapante, amargando um terceiro lugar e, portanto, fora do segundo turno. Foi por isso que, no dia seguinte à eleição, as ações da Cemig valiam quase 50% mais do que uma semana antes. O ânimo dos investidores ficou ainda mais aquecido quando, no dia 28 de outubro do ano passado, Zema foi eleito governador de Minas Gerais, com quase 7 milhões de votos, surpreendentes 72,8% dos votos válidos. Com isso, tudo levava a crer que a privatização da Cemig era apenas uma questão de tempo. Desde então, as ações da empresa só valorizaram na Bolsa.

Xavier: “A privatização da Cemig não passa nem na Assembleia nem no povo” (Crédito:Divulgação)

A realidade, porém, é outra. “Essa questão é muito mais complicada e delicada do que o governador Zema deu a entender”, afirma o advogado Leonardo Guimarães, 47 anos, sócio da GVM — Guimarães & Vieira de Mello, que já fez trabalhos para a Cemig. Especialista em fusões e aquisições de empresas, Guimarães sabe o que fala. “Para privatizar uma estatal, é necessário obedecer leis que não existem no setor privado. É tudo muito mais complexo. Há enormes entraves jurídicos”. Pela Constituição do Estado de Minas Gerais, a privatização de estatais dos setores de saneamento e energia, como é o caso da Cemig, exige dois processos nada simples. Primeiro, é necessária a aprovação por 3/5 da Assembleia Legislativa (AL), o que significam 46 dos 77 deputados da casa. Ultrapassada essa etapa, vem a segunda batalha: o referendo popular. Sem a aprovação do povo mineiro, a Cemig continuará sendo uma estatal, ainda que os deputados deem seu aval ao processo. Fundada há quase 70 anos pelo então governador Juscelino Kubitschek, a Cemig é uma das principais estatais mineiras, com receita registrada no ano passado acima de R$ 22 bilhões. Por tudo isso, os especialistas acreditam ser praticamente impossível que a estatal mineira de energia passe para o setor privado.

Deputado pelo Partido Cidadania, João Vitor Xavier, 37, é duro nas críticas à postura do governador mineiro. “Numa ação puramente eleitoreira, Zema cometeu dois erros graves: subestimou as normas que protegem a Cemig de ser vendida e superestimou sua força como chefe do Estado”, diz Xavier. “Não tenho dúvidas de que esse processo não passa na Assembleia e nem no voto popular. O povo jamais vai abrir mão de um patrimônio do estado, como é a Cemig”, afirma ele, que é mineiro de Belo Horizonte. O deputado Sávio Souza Cruz, do MDB, concorda. Aos 61 anos e também nascido na capital mineira, Souza Cruz estéa na vida pública praticamente desde que João Xavier nascei. São 20 anos como parlamentar, além de já ter sido secretário estadual de Administração, de Saúde e de Meio Ambiente. Com tamanha experiência, Souza Cruz considera a privatização da Cemig algo “quase impossível”.

Guimarães: “Há enormes entraves jurídicos para privatizar a Cemig” (Crédito:Divulgação)

Assim como Xavier, ele não vê chances de o projeto ser aprovado. “O governador Zema é empresário. Ele pensa que compra e vende o que quer, quando bem entende. Mas ele precisa entender que a Cemig não é dele. É do povo mineiro”, declara Souza Cruz. “Já basta terem vendido uma usina da Cemig”, diz, referindo-se á compra da hidrelétrica de São Simão pela estatal chinesa State Power Investment Corporation (SPIC), por R$ 7,2 bilhões, em 2017. “O curioso nesse negócio é que venderam parte da Cemig a uma estatal. Quer dizer que nosso patrimônio pode ser administrado por uma estatal da China, mas não por uma estatal mineira?”, questiona. Este, alías, é um dos caminhos buscados pelo governo Zema: vender subsidiárias da Cemig, processo que não precisa seguir todas as normas quando se trata de vender a própria companhia. Mas isso também não é tarefa das mais simples.

Em maio deste ano, a própria SPIC fez uma oferta vinculante pela fatia de 15% que a Cemig detém na hidrelétrica de Santo Antônio, em Rondônia. “Mas o valor ficou abaixo da proposta que os chineses tinham apresentado anteriormente”, diz um alto executivo da Cemig, que está na companhia há mais de 10 anos e pediu para não ser identificado. O negócio fazia parte do plano de desinvestimentos do governo, que tenta obter recursos para reduzir suas dívidas. Apesar de entender que seria ótimo para as contas do estado privatizar a maior empresa integrada do setor de energia elétrica da América do Sul, com lucro líquido em torno de R$ 1,5 bilhão no ano passado, o executivo também não acredita que Zema consiga cumprir sua promessa de campanha. E se mostra apreensivo em relação ao que pode acontecer com as ações da companhia. “Quando o mercado perceber que não haverá privatização, o papel pode voltar aos valores de antes das eleições”, analisa. “Ou seja, na casa dos R$ 7”.

Até o próprio Zema parece já ter percebido o tamanho do problema que criou. Na semana passada, o governador declarou que a privatização da Cemig, que ele pretendia executar este ano, pode ficar apenas “para o segundo semestre do ano que vem ou para 2021”. No dia seguinte, as ações da companhia na Bolsa caíram quase 3%. Ao que tudo indica, o pior ainda está por vir.