Vamos combinar uma coisa. De forma tola (e intencional!) nos é ensinado que democracia é o desejo da maioria. Bobagem. Democracia é um campo muito amplo que inclui redução de desigualdade entre as pessoas. Exemplos. Direito a uma regra de aposentadoria justa e equilibrada para o funcionário público da base, para o informal, para o cara do setor privado e não apenas para a elite do funcionalismo e seus privilégios. Isso é democracia (e não temos). Uma educação em que o sistema não esteja distorcido na base é democracia (não temos). Saúde com menos assimetria (não temos). Acesso equilibrado à justiça (não temos). À moradia (não temos). Na mobilidade somos altamente desiguais (pobres passam até quatro vezes mais tempo no trânsito que seus patrões). E na segurança alimentar? A imagem de moradores de Fortaleza atacando a traseira de um caminhão de lixo, cena viralizada nesta semana, deveria paralisar o Brasil. E exigir do atual ocupante da cadeira presidencial um pedido de desculpas. Não por ser culpado direto ou indireto — mesmo que não seja. Mas por termos produzido como país uma situação tão degradante.

Na verdade, a única democracia que temos é a mais elementar delas: um cidadão, um voto. Ela nos ilude. Porque esta foi a maneira que o Estado encontrou para dar legitimidade ao eleito. Nada mais. Dar um verniz de legítimo e moral ao que é apenas texto da lei. Em especial para cargo majoritário. Basta uma conta. Nas eleições de 2018, havia 147 milhões de pessoas aptas a votar. Destas, o atual ocupante da cadeira presidencial teve, no primeiro turno, 49 milhões de votos. Isso dá um terço: 33,3%. Significa que ele não foi o desejo da maioria. A maioria não queria ninguém, ou não apareceu para votar, ou escolheu qualquer outro nome. Ponto.

[Para mim, um sorteio poderia definir melhor sorte. Jogue os CPFs no sistema da MegaSena, gire bem e tire um número. A cadeira é sua. Ou use Inteligência Artificial. Prefiro o erro da máquina do que a escolha que meus compatriotas fizeram. Mas isso é outro tema.]

Em 2022, haverá segundo turno para presidente. É a probabilidade histórica. Desde a redemocratização, das oito disputas presidenciais, apenas as de 1994 e 1998 (ambas com Fernando Henrique Cardoso) não caminharam para o segundo turno, revelando que em 75% das vezes os ocupantes do Planalto nunca foram o tal desejo da maioria. Mas esse é o jogo jogado. A regra. O fato é que a probabilidade alta (três em quatro) de segundo turno embala a busca desesperada pela terceira via. E olhar desesperadamente para ela nos faz esquecer o que é basilar: não ter mais JB.

E aí vem o problema que parte considerável do Brasil produtivo, que trabalha de verdade, parece ignorar: a real probabilidade de o ocupante da cadeira presidencial permanecer mais quatro anos. Afinal, desde que FHC inventou a reeleição, e se aproveitou dela, todos foram reeleitos. Em 2018, no auge do antipetismo, tivemos na parte decisiva da corrida presidencial três tipos de eleitores de JB. O primeiro grupo era a ala bolsonarista raiz (o tal gado: negacionista, antivax, antiliberal, antissocial). Depois vinham os iludidos e os de má-fé. Num caso, gente que apostava em um governo liberal — algo muito improvável, dada a vida de funcionário público eterno de JB, que saiu do mundo militar para o mundo parlamentar. No último grupo, aqueles que viram a chance de continuar mamando no Estado. E para isso colabora a máquina pública brasileira. Ela domina, seduz ou mete medo em amplos setores produtivos.

Mesmo JB sendo incompetente e chorão. Não é minha opinião, apesar de concordar. Foi ele mesmo que disse isso. O fato é que a chance real do bis bolsonarista existe porque nosso Estado é do tamanho que é. Gigante, ganancioso e opressor num padrão de assustar Louis Althusser (1918-1990). Aqui, a renúncia fiscal para o pessoal de cima este ano deve ser de R$ 1 bilhão por dia, 11 vezes superior ao pessoal de baixo, via Bolsa Família, ou qualquer nome que o programa passe a ter. Quem não quer? E a invasão insaciável dos militares pelos cargos públicos, ou conselhos de administração de estatais, e toda sorte de poder para negociar negociatas. Quem vai abrir mão? E o orçamento paralelo na mão da turma de Lira. JB & Família precisam ainda se livrar de encrencas jurídicas. Esse pacote inteiro deixa explícito que ele fará de tudo para não soltar o osso — Teto de Gastos: hahahahaha.

Tendo os elementos criminais de impedimento mais que elencados, o Brasil arrisca ao não tirar JB da cadeira. Já! Embarcamos numa estratégia Round 6, a distópica série sul-coreana da Netflix. Tratamos como brincadeira infantil uma ciranda de morte. Mas, ao contrário da ficção, simbolizada em uma assustadora bonecona gigante, a cena emblemática de nosso cotidiano é real e ainda mais assustadora: a do caminhão de lixo atacado por pessoas com fome. Perdemos a capacidade de indignação. E esse é o único ativo que faz um país sair do lodo. Ah. Isso tudo tem a ver com economia. Aliás, é a base de tudo na economia.