A cada vez que o semáforo exibe a cor vermelha, um mar de gente toma as ruas em frente à estação de Shibuya, localizada em um dos bairros mais populares de Tóquio, no Japão. Estima-se que em média 3 mil pessoas atravessem o cruzamento a cada intervalo no trânsito. Uma multidão de executivos apressados com expressões sérias se mescla com outra multidão, essa de jovens atentos aos seus modernos smartphones. Mesmo sendo um dos notórios pontos turísticos da capital japonesa, encontrar estrangeiros por lá ainda é raro. Ainda mais difícil é achar neste formigueiro humano quem prefira usar as criptomoedas como um meio de pagamento em troca das notas de iene ou dos cartões de crédito. Assim, se engana quem pensa que em uma das maiores mecas da tecnologia do planeta, a Bitcoin e seus pares sejam convenientemente usadas para as “comprinhas do dia a dia”. Também erra, por outro lado, quem acredita que o aparente conservadorismo do consumidor japonês acaba com qualquer chance de uma revolução do que chamamos de dinheiro.

De acordo com o site Coinmap, existem pouco mais de 14 mil estabelecimentos em todo o planeta que aceitam as moedas virtuais como formas de pagamento, 75% acima do registrado há dois anos, quando 8 mil empresas eram adeptas da tecnologia. Uma dessas é a Bic Camera. Desde abril de 2017, a varejista japonesa passou a aceitar o pagamento de seus produtos usando a moeda virtual Bitcoin em suas lojas. Apesar de todo o processo levar menos de três minutos, ele é relativamente mais trabalhoso do que um pagamento em dinheiro ou usando um cartão de crédito. A vantagem se dá pela segurança, já que todo o valor é transferido digitalmente. O problema é que em uma sociedade que já deu sinais claros de que não leva segurança digital tão a sério, isso não foi suficiente para convencer os consumidores a apostarem suas fichas – ou seu dinheiro – nessa nova forma de pagar. “Quase ninguém usa. É muito raro”, afirma um dos funcionários da loja. “Geralmente são estrangeiros.”

Sem decolar: cruzamento em Shibuya, Tóquio. Num mar de modernidade, moeda virtual ainda é algo de iniciados

Do outro lado do balcão, os ganhos parecem mais atraentes. Ao contrário do cartão de crédito, em que as operadoras podem levar mais de um mês para repassar o valor aos comerciantes, as transações com criptomoedas são recebidas na hora. Algo que chamou a atenção das empresas. Em 2018, por exemplo, a Yamada Denki, outra gigante do varejo japonês, focada em eletroeletrônicos, com 199 lojas e 30% de share, incorporou as moedas virtuais ao seu portfólio. “O aumento gradual da aceitação de criptomoedas pode ser visto como tendência na região”, afirma Sowmya Kulkami, analista da empresa de pesquisa GlobalData. “Os comerciantes estão optando por esse método de pagamento devido aos benefícios comerciais.”

AMOR À CAMISA Com uma sacola em mãos, na qual carregava um hard drive recém-adquirido usando Bitcoins, em Akihabara, bairro que concentra lojas de eletrônicos em Tóquio, o empreendedor Rocelo Lopes está satisfeito com sua compra. Mais pela forma como pagou do que pelo produto adquirido. Sua expressão, aliás, combina com seu guarda-roupa. Por debaixo do casaco para enfrentar o frio de 2 graus da capital japonesa, o empresário usa uma camiseta com os dizeres “fork the banks”. O fork, é bom dizer, só entrou na segunda versão do vestuário, já que a primeira versão traz um palavrão em inglês. “Eu tive de mudar”, diz ele. “Mas minha missão continua sendo ‘desbancarizar os bancarizados’.”

Adoção: cerca de 14 mil estabelecimentos ao redor do planeta aceitam pagamentos em criptomoedas. No Brasil, eles se concentram na região sudeste

No Brasil, Lopes comanda a corretora CoinBr e é um dos principais entusiastas dessa virada tecnológica. “As criptomoedas estão repetindo o mesmo movimento traçado pelas maquininhas de cartão de crédito”, diz Lopes. “Como a tecnologia é mais moderna, a adoção tende a ser mais rápida.” Fundada em 2013, em Florianópolis, sua companhia, diz ele, transaciona R$ 3 milhões em criptomoedas por dia. Em abril do ano passado, a empresa se fundiu ao fundo de venture capital Stratum, com sede em Hong Kong. O negócio permitiu a expansão da base de clientes de 120 mil para 150 mil. A companhia encerrou 2018 com US$ 500 milhões transacionados.

A cifra inclui todas as operações, desde compra e venda de moedas digitais até os proventos obtidos com o gerenciamento das carteiras e com as contas pagas usando criptomoedas. O carro-chefe do ano passado, porém, foi a mineração. Trata-se de um processo que remunera com novas unidades quem cede o processamento gráfico de seus computadores para dar força ao blockchain, a tecnologia por trás da moeda. Mais de 6 mil máquinas estão dedicadas ao trabalho em um galpão de 750 metros quadrados em Ciudad del Este, no Paraguai. A localização é estratégica. O custo da energia elétrica no país vizinho é até sete vezes mais baixo do que no Brasil. E minerar exige muita energia.

No varejo: além de aceitar em redes como Bic Camera, a bitcoin também pode ser transferida em caixas eletrônicos espalhados por Tóquio

Para 2019, a companhia aposta na Stratumblue, uma espécie de cesta de investimentos voltada para usuários leigos que desejam investir em criptoativos. A CoinBr escolhe dez criptomoedas para compor um único token. Dessa forma, a oscilação do preço deste ativo varia de acordo com a movimentação do mercado para essa mesma dezena de moedas virtuais. Segundo Lopes, em apenas dois meses, os ganhos obtidos com o negócio já superaram os outros braços da empresa no mesmo período de tempo. A expectativa, assim, é de que a mineração deixe de ser o centro das atenções – e dos proventos – este ano.

incertezas “Para ser honesto, eu acho que as criptomoedas são mais úteis para pagamentos online e no e-commerce”, afirma o empresário Roger Ver, um dos principais nomes do segmento. Assíduo investidor do setor, ele comanda a corretora e mineradora Bitcoin.com, além de ser um dos principais nomes da Bitcoin Cash, sexta criptomoeda mais movimentada do mundo. “Eu acredito que as criptomoedas vão substituir as moedas atuais.” Para que isso aconteça, um dos grandes desafios é a volatilidade. “O mercado precisa crescer. É preciso mais exchanges (casas que comercializam as moedas) e mais empresas aceitando. Se há poucas pessoas usando, o valor tende a flutuar mais”, afirma.

A Bitcoin foi regulamentada como método de pagamento oficial no Japão no começo de 2017. Na visão do governo japonês, essa foi a forma encontrada para dar controle a um ativo descentralizado e independente de decisões governamentais ou do sistema bancário convencional. Na época da regulamentação, o primeiro-ministro Shinzo Abe forçou as exchanges a se adequarem a normas financeiras básicas para evitar lavagem de dinheiro. No Brasil, o cenário é outro. Em 2017, uma comissão especial para discutir o assunto foi criada pelo deputado Áureo Lídio Ribeiro (SD-RJ), autor de um projeto de lei (2303/2015). Em entrevista à DINHEIRO, na época, ele afirmou que “a Receita Federal estava perdidinha” e que “agora que eles possuem entendimento de que o caminho da regulamentação está na atuação das corretoras das moedas”. Mais de um ano depois, a situação segue a passos lentos. Mais lentos até do que a usabilidade das moedas virtuais no mercado.


“As criptomoedas vão substituir as moedas atuais”

Apelidado de Bitcoin Jesus, o empresário Roger Ver nasceu nos Estados Unidos e, aos 40 anos, é um dos maiores nomes do mercado de criptomoedas do mundo. À frente da Bitcoin.com, que atua como uma corretora e também com serviços de mineração, Ver é um dos principais incentivadores da Bitcoin Cash, criptomoeda que surgiu como variação da Bitcoin, e acredita num mundo em que as pessoas vão usar moedas virtuais no dia a dia.

Como convencer o consumidor comum, que não sabe como as criptomoedas funcionam, a usar este método de pagamento nas lojas?
Para ser honesto, acho que criptomoedas são mais úteis para pagamentos online e no e-commerce. Principalmente para transações internacionais. Um consumidor comum provavelmente teria dificuldade de usá-las, mas ele também encontraria problemas para fazer transferências internacionais de dinheiro pela internet.

Mas o senhor acredita que um dia o varejo realmente incorpore esse método de pagamento?
Não tenho certeza se será a Bitcoin, a Bitcoin Cash, ou qualquer outra, mas acredito que as criptomoedas vão substituir as moedas atuais. Para isso é preciso que o método de pagamento seja simples para o consumidor comum usar.

Como lidar com a questão da volatilidade das criptomoedas? Como fazer com que o preço seja mais estável?
O mercado precisa crescer. É preciso mais exchanges e mais empresas usando as moedas no comércio. Se há poucas pessoas usando, o valor tende a flutuar mais.

Em 2017 o valor de mercado da Bitcoin atingiu o pico. Mesmo assim, ela sofreu grande variação. O que explica isso?
Especulação. Havia muita gente especulando e pouca gente usando. É preciso que existam pessoas usando as criptomoedas no comércio e não que elas sirvam de ferramenta especulativa.

Para que as criptomoedas se tornem métodos de pagamento mais usuais, é preciso que gigantes do mercado, como Amazon, Google, Walmart, entre outros, abracem essa tecnologia?
Seria bom contar com a boa vontade deles, mas isso não é o suficiente. Nós precisamos que a Bitcoin Cash, por exemplo, seja mais útil do que os métodos de pagamento atuais. É preciso fazer com que esse tipo de transação seja tão rápida, simples e confiável quanto as demais.

Em geral, os grandes bancos mundiais têm uma posição contrária ao mercado de criptomoedas. Como enfrentar um oponente tão forte?
Não é preciso que exista uma guerra. É preciso que as criptomoedas sejam tão úteis que as pessoas questionem os motivos pelos quais precisam de conta bancária.

Os governos poderiam barrar o uso de criptomoedas em um país?
Por serem descentralizadas, as criptomoedas não têm um órgão de controle. Uma folha de papel com alguns números impressos é tudo o que uma pessoa precisa para receber e transferir dinheiro pela internet no mundo inteiro. Eles literalmente teriam que desligar a internet global. Eles podem atrasar o processo, colocar pessoas importantes na cadeira e causar problemas, mas em relação a acabar de vez com elas, é impossível.

É possível que as criptomoedas sejam usadas como um método de pagamento ao mesmo tempo em que são um ativo de investimento?
Se o consumidor usá-las como método de pagamento e houver um suprimento limitado dessas moedas no mercado elas se transformam em um incrível ativo de investimento. Eu comprei muitas Bitcoins porque eu sabia que se elas se tornassem um método de pagamento útil o preço subiria.

Mas, se o preço subir, as pessoas podem ficar reticentes em gastar suas criptomoedas em produtos e serviços, por conta da volatilidade…
Quando foi a última vez que você comprou um celular? Por que não esperar até agora para comprar, pela mesma quantia, um celular mais moderno e melhor hoje? As pessoas querem ter as coisas na hora. É preciso que a criptomoeda seja mais útil como forma de pagamento do que os métodos convencionais.