?Chamem o Luiz Felipe, ele entra com a cavalaria?, costumava pedir o presidente Fernando Henrique Cardoso em toda situação crítica do Mercosul. Era assim quando a Argentina esperneava contra os acordos no bloco. Ou quando negociava com o secretário do Comércio americano, William Cohen, ou com a dama de aço Charlene Barshefsky, representante comercial do governo dos Estados Unidos. Na semana passada, o presidente repetiu o gesto pela última vez, chamando o chanceler Luiz Felipe Lampreia para passar uma descompostura no governo chileno, que flertou com o Mercosul mas acabou noivando de papel passado com os Estados Unidos. Pedido feito e atendido, agora o auxiliar sente-se livre para ser substituído. Sairá de férias antes do Natal e quer voltar apenas para passar o cargo a seu sucessor em janeiro ou, mais tardar, fevereiro.
No universo de punhos de renda do Itamaraty, Lampreia nunca foi um protótipo do diplomata. Ex-zagueiro do time do Colégio Santo Ignácio no Rio de Janeiro, desde jovem dava canelada nos adversários e não corria de uma boa briga. Adulto, após passar seis anos trabalhando para consolidar o Mercosul, o ministro das Relações Exteriores deixa o cargo num momento em que o bloco parece dar os últimos suspiros. A decisão do Chile de firmar um acordo bilateral de livre comércio com os Estados Unidos mais uma vez colocou em xeque o futuro do bloco do Cone Sul. Entre os diplomatas, a decisão de Lampreia foi recebida com estranhamento. ?Ninguém deixa de ser chanceler antes do encerramento do governo?, comentou um embaixador. Outros comemoraram não porque não gostassem do comandante do Itamaraty. ?É que sua saída pode abrir duas vagas em postos importantes, como Londres e Washington?, diz outro embaixador. Na semana passada, o embaixador do Brasil em Londres, Sérgio Amaral, desembarcou em Brasília para uma conversa sobre o tema com Fernando Henrique. De Washington, o embaixador Rubens Barbosa via a possibilidade de suceder Lampreia, dando um novo impulso à política externa brasileira. Na bolsa de apostas do Planalto, o nome mais cotado é, por hora, o do ex-ministro do Desenvolvimento, Celso Lafer. Com ele, FH sente-se em dívida. Lafer deixou um posto em Genebra, onde estava muito bem, para assumir o Ministério do qual foi defenestrado em seguida.

Lampreia vai deixar saudades entre os empresários brasileiros. ?O chanceler é o responsável por instituir uma visão de cunho mais econômico e comercial para o Itamaraty?, elogia o diretor-executivo do Conselho de Empresários da América Latina, Alberto Pfeifer. ?Ele é um grande negociador. E sabe ser muito duro em uma mesa de negociação?, lembra o presidente da Organização Mundial de Comércio, Mike Moore, de passagem pelo Brasil na semana passada. Há quem diga, ainda, que a melhor maneira de avaliar seus feitos é pela péssima reputação que tem na Argentina, onde é tido como um verdadeiro inimigo.

Há pelo menos dois anos Lampreia vinha programando sua aposentadoria. Em 1998, se engajou ativamente na criação do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebre), uma ONG voltada para estudos nesse setor. Com sede no Rio de Janeiro, tem recursos do mundo privado e de organismos internacionais, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Lampreia, hoje vice-presidência da instituição, deve tornar-se presidente de honra.

Quando assumiu o Itamaraty, em 1995, Lampreia elegeu a integração regional uma de suas prioridades. De lá para cá, apesar das inúmeras dificuldades, nunca esmoreceu. A desvalorização do real, no início de 1999, parecia que iria nocautear de vez o bloco. Lampreia, porém, manteve o espírito integracionista aceso e logo passou a ser conhecido como o ?soldado do Mercosul?. No final do primeiro semestre deste ano, depois do relançamento do Mercosul, em Buenos Aires, o soldado deu mostras de cansaço. Confidenciou a amigos mais próximos que estava na hora de ir para casa. Acha que sua missão estava cumprida. Afinal, era o segundo chanceler que mais tempo permaneceu no cargo. Só atrás do Barão do Rio Branco, cuja gestão no início do século se estendeu por nove anos.