Por décadas, São Roque foi sinônimo de vinho de mesa. A cidade de 90 mil habitantes, em uma região montanhosa a 70 quilômetros da capital paulista, ganhou reputação um tanto duvidosa a partir das vinícolas fundadas ali por famílias portuguesas e italianas que se dedicavam a produzir bebidas simples, vendidas em garrafões e a preços populares. Isso começou a mudar quando empresários locais perceberam o potencial da cidade para atrair visitantes interessados em comer, beber e aprender sobre vinho. Às tradicionais degustações somaram-se ofertas gastronômicas mais sofisticadas e passeios temáticos. Aos poucos, o enoturismo abriu novas oportunidades de negócio e redefiniu a paisagem local. Hoje, o Roteiro do Vinho de São Roque agrega mais de 40 estabelecimentos que recebem até 6 mil turistas por dia a cada fim de semana. Os vinhedos, antes plantados em caramanchões com uvas americanas (mais indicadas para suco), e híbridas (algumas desenvolvidas especialmente para o clima da região), foram convertidos para o sistema conhecido como espaldeira, em que as plantas são conduzidas na vertical, e ganharam parcelas com castas europeias. Nos últimos anos, foi introduzida também a técnica da dupla poda, que permite a colheita durante o inverno, em condições que favorecem a maturação das uvas e elevam a qualidade da matéria-prima para a produção de vinhos finos.

O resultado dessas inovações tem aparecido tanto na forma de prêmios conquistados dentro e fora do País quanto na inclusão de vinhos de São Roque nas cartas de restaurantes renomados, como o DOM, de Alex Atala, e o Taraz, no luxuoso hotel Rosewood, em São Paulo (leia quadro à página 58).

Nas próximas semanas, chegam ao mercado os rótulos da linha Lotes de Coleção, elaborados pela Vinícola Góes com as castas portuguesas Verdelho, Tinta Roriz e Touriga Nacional, além da francesa Petit Verdot. Serão por volta de 1 mil garrafas de cada varietal, a preços acima de R$ 120, que se somam aos atuais ícones da Góes, o Philosophia Cabernet Franc (R$ 155) e o Licoroso Gumercindo de Góes 2011 (R$ 218), que obteve medalha de bronze na avaliação da revista britânica Decanter, referência mundial no setor.

Essa evidente evolução na qualidade dos rótulos de São Roque acompanha outra, que é a sofisticação das atrações do Roteiro do Vinho. De olho em um público de alto poder aquisitivo, os empreendimentos turísticos da região agora oferecem piqueniques sob o parreiral, pedaladas nos vinhedos e até colheitas noturnas. “São experiências que permitem ao visitante ter um contato com a origem do nosso trabalho, diretamente no terroir paulista”, afirmou Cláudio Góes, diretor-geral da vinícola que leva seu sobrenome, fundada em 1938. Ele recebeu pessoalmente o grupo inscrito para Colheita ao Luar, na noite de 24 de junho. Foi a primeira das quatro experiências do tipo oferecidas pela Góes na vindima de inverno deste ano.

Com o vinhedo iluminado, cada casal recebe uma cesta de vime e uma tesoura para colher parte dos cachos de uva que serão usados na produção dos Lotes de Coleção safra 2022. “A colheita de inverno tem sido a iniciativa chave para obter nossas melhores uvas”, disse o diretor de produção da vinícola, Fábio Góes. Encerrada a colheita, é servido um jantar harmonizado pela sommelière Silvia Macella Rosa com os principais rótulos da casa. Para quem gosta de conciliar vinhos e atividade física, a dica é o Wine Bike, passeio de 2h30 aos domingos pela manhã no qual um grupo de até 30 pessoas pedala 11 quilômetros entre vinhedos.

VILA DON PATTO Como só pode ser realizada em datas específicas, ditadas pela natureza, a Colheita ao Luar é uma das atividades mais exclusivas que o enoturismo oferece em São Roque. Mas há muito mais para fazer por lá durante o dia, especialmente no inverno. No complexo enogastronômico Vila Don Patto, que reúne restaurantes português e italiano, boulangerie, cervejaria e até heliponto, a grande atração da temporada é o piquenique nas Vinhas da Vila. Este ano, o espaço ganhou sofás confortáveis e aquecedores que tornam o ambiente mais aconchegante. Atendidos por um serviço impecável e ao som de boa música ao vivo, casais podem escolher entre duas opções de cestas (R$ 325 e R$ 380), relaxar e curtir a tarde toda, até o por do sol. “O contato com a natureza é sempre apreciado por nossos clientes, que gostam de curtir sem pressa”, disse o proprietário Túlio Patto. Repleta de ambientes “instagramáveis”, caso da decoração com guarda-chuvas coloridos, a Vila Don Patto também oferece estrutura para casamentos e eventos corporativos. Para 2023 está prevista a inauguração de um hotel boutique.

A novidade irá suprir o que hoje é a maior carência da região: a hospedagem. Embora seja uma estância turística, São Roque ainda carece de hotéis e pousadas de alto padrão. A proximidade da capital permite que boa parte dos turistas dedique apenas um dia ao Roteiro do Vinho. Ainda são poucas opções de pousada, na maioria simples. Uma delas é a Villa Ártemis, com 18 acomodações, piscina, spa e um salão para vivências. Perto dali, o Sítio Terra e Arte tem na natureza seu maior atrativo. Com área total de 50 mil m2, mais da metade coberta de Mata Atlântica, oferece uma trilha ecológica que margeia um rio e contato com animais, alguns deles exóticos. As refeições são servidas em um galpão rústico, mas com bancos forrados de pele. Nos dois casos, a localização ajuda. Ficam a poucos minutos de carro da Góes, hoje um parque enoturístico repleto de opções gastronômicas. A mais recente é a Casa Araucária, antiga residência da família onde é possível escolher entre carnes na parrilla e fondue de queijo. Por ali, os planos de um hotel ainda estão no campo dos sonhos. Mas o visionário Cláudio Góes pretende converter parte de uma de suas fazendas em condomínio enoturístico. “Todo mundo gosta de beber vinho, mas ninguém quer ter o trabalho de cuidar do vinhedo. Nós já fazemos isso, então vamos oferecer essa possibilidade aos futuros condôminos.”

VINHOS COM MÚSICA, ÂNFORAS E RECONHECIMENTO

Pertencente à quarta geração de uma família de vinhateiros que comercializava rótulos com a marca Brasil, Gustavo Borges faz parte de uma geração que recuperou o entusiasmo pela vitivinucultura de qualidade em São Roque. Sem formação em enologia, ele arrendou um galpão onde havia antigos tanques de cimento para vinificação, criou a BellaQuinta Vinhos Finos e passou a fazer ali algumas experimentações bem inusitadas. Uma delas é usar o poder da música na evolução dos vinhos. Duas horas por dia, a canção Dona, da dupla Sá e Guarabyra, é tocada diante das garrafas que repousam em uma cave. Segundo Borges, a sonoridade favorece o envelhecimento. Em outra frente, procurou um fabricante de vasos de cerâmica para encomendar ânforas no formato ideal para que seus vinhos amadureçam — o que de fato tem dado bons resultados.

Hoje, três rótulos da BellaQuinta estão nas cartas de ótimos restaurantes em São Paulo. O chef Alex Atala serve o licoroso branco de uva Niágara no estrelado DOM e colocou o Palha Cabernet Franc na adega de seu outro restaurante, o Dalva e Dito. Quem vai ao Taraz, no hotel de luxo Rosewood, encontra tanto o BellaQuinta licoroso quanto uma versão do Palha com passagem por barrica. “Quando fui convidado para treinar a equipe do Rosewood sobre esses vinhos, apresentei outros rótulos, mas não rolou. Acho que dois já está bom”, disse Borges. Com esse tipo de reconhecimento, os vinhos de São Roque têm tudo para escrever um novo capítulo na história da vitivinicultura brasileira.