Quando se pensa em políticas públicas, conhecer o passado, entender o presente e mapear o futuro são três das diretrizes essenciais para a construção de uma nação com economia sólida. No Brasil, a cultura política arraigada na polarização partidária afasta projetos de longo prazo e faz com que apenas o presente seja considerado pelos gestores. Prova disso foi dada na semana passada, quando o governo federal traçou a previsão de déficit nas contas públicas em R$ 150 bilhões para 2021. Além de longe da realidade, já que a Covid-19 terá efeitos também de médio prazo na relação entre gastos e arrecadações públicas, a cifra já veio embrulhada em incertezas, uma vez que o governo avisa que mudará esse número outras vezes, mediante a marcha dos acontecimentos que envolvem a pandemia.

As perspectivas macroeconômicas para 2021 fazem parte do Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO), proposta enviada do Executivo para o Legislativo e que aponta as previsões de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), salário mínimo e déficit das contas públicas. Diante das incertezas trazidas pelo novo coronavírus, coloca-se também em questão o avanço das reformas estruturantes, como a administrativa e tributária, pautas consideradas essenciais para gerar um alívio econômico no futuro. “Falar em reformas hoje é inviável. Não há espaço para votações desse tipo, mas o Paulo Guedes deveria focar nas articulações e projetos para que eles sejam efetuados de modo célere assim que a pandemia arrefecer”, afirma o professor de macroeconomia e doutor em contas públicas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Carlos Mantovani.

Diante da certeza da recessão, algumas medidas já poderiam ter sido tomadas pelo governo para aliviar as contas públicas antes de a pandemia ter chegado. A mais evidente é a reforma administrativa, que enxuga o tamanho do Estado. Para Celso Caramante, ex-secretário da Fazenda do governo do Estado de São Paulo e consultor técnico do então ministro Henrique Meirelles durante a presidência de Michel Temer, boa parte das reformas já estavam desenhadas desde 2016, mas o governo Bolsonaro perdeu tempo com pautas polêmicas. “Hoje fica claro que poderíamos enfrentar essa crise com mais capacidade de investimento se a reforma administrativa já tivesse saído do papel”, afirma. O especialista avalia que a proposta desenhada durante o governo Temer envolvia redução de 16% nos gastos públicos com folha de pagamento apenas com a eliminação de cargos obsoletos.

“Há clara intenção das Casas em discutir temas que diminuam o papel do Estado”, afirma Eliomar Santana, assessor técnico de assuntos econômicos do Senado. Ele avalia que já havia espaço para aprovação de mais medidas que envolvessem reformas estruturantes antes do surto da Covid-19. Essa perspectiva, inclusive, já havia sido apresentada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que cobrava mais ação e menos discursos eleitoreiros por parte do presidente da República.

NO ESCURO De acordo com o secretário de política econômica do governo, Adolfo Sachsida, a equipe econômica resolveu não fazer novas projeções na LDO sob o pretexto de esperar notícias mais concretas sobre os impactos do coronavírus no Brasil, já que o horizonte da retomada econômica impacta o PIB e a arrecadação para 2021. “O déficit primário atual é calculado a R$ 149 bilhões, mas isso vai ser alterado bastante. Cada ponto do PIB dá uma mudança muito grande na receita e, com o cenário externo, isso é muito difícil de se estimar neste momento.”

Magnitude do colapso econômico provocado pela covid-19 é diferente de tudo que vivemos” Gita Gopinath economista-chefe do fundo monetário internacional (fmi). (Crédito:Eric Piermont)

Segundo Sachsida, as estimativas de arrecadação ficarão por conta da Receita Federal, que passará os dados para a equipe econômica. “Esses números, atualizados no Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas, são publicados periodicamente”, disse. Até fevereiro o relatório era apresentado de dois em dois meses, mas Waldery Rodrigues, secretário especial da Fazenda, afirmou à DINHEIRO que o relatório poderá sair de 15 em 15 dias.

Outra questão importante levantada pela equipe econômica diz respeito ao Teto de Gastos, que em função do Estado de Calamidade já aprovado pelo Congresso, poderá ser furado neste ano. Para Rodrigues, é importante que a medida seja prolongada também para 2021, pois só assim será possível “minimizar os riscos de shutdown [parada dos serviços públicos por falta de recursos]”. Sem alterar os números previstos antes da pandemia, a estimativa do governo é que o PIB cresça 3,3% em 2021, 2,4% em 2022 e 2,5% em 2023. Ao menos para o próximo ano o número parece fora da realidade.

Enquanto o governo tenta tapar o sol com a peneira, alguns órgãos nacionais e internacionais já fazem suas apostas para o PIB brasileiro deste ano. Na última semana o Fundo Monetário Internacional (FMI) estimou que o tombo da economia do País pode chegar a 5,1%. Mais otimistas, instituições financeiras brasileiras falam em quedas que variam entre 1,5% e 3%. Convém lembrar que nenhuma previsão estimou corretamente o crescimento de apenas 1,1% em 2019.

DÉFICIT RECORDE Em 2020, o sonho de Paulo Guedes, de deixar a dívida pública em menos de R$ 90 bilhões, se tornou um pesadelo. Agora, o próprio governo estima que haja um rombo na casa dos R$ 500 bilhões devido aos gastos não previstos envolvendo garantia de empregos, socorros aos estados, municípios e empresas, além dos investimentos em saúde pública, o que pode fazer com que a dívida pública ultrapasse 80% do PIB. O professor Carlos Mantovani, da Unifesp, diz que é possível dar todo o suporte por meio de emissão de dívida e redirecionamento orçamentário. “Mas se torna essencial que alguns projetos, principalmente os que envolvem privatizações e diminuição do estado, avancem rápido após o fim da pandemia.”

Pedro Schneider, economista do Itaú Unibanco, afirma que a retomada do crescimento em 2021 pode reduzir o endividamento público. “Se houver ajuste do lado dos gastos e a Selic continuar baixa, o déficit primário volta para ao redor de 1% do PIB”, diz, contando a retomada dos investimentos.Para que esse cenário se torne real, é preciso primeiro superar 2020. Na última semana, o Banco Central revelou que o déficit primário do setor público deste ano saltou de 1,65% para 4,14% do PIB, o maior percentual da série histórica do BC, iniciada em dezembro de 2001. Os dados do Relatório de Mercado Focus, divulgados na segunda-feira 13 pelo BC, mostram ainda que o resultado nominal do setor público apresentará rombo de 9,02% do PIB em 2020. Se confirmado, será o pior desempenho desde 2015, quando o déficit nominal foi de 10,22% do PIB. Na ocasião, a Selic estava em 13%, o que tornava o serviço das dívidas do País muito mais alto que atualmente.

O que fazer Consenso entre todos os especialistas é de que Brasil precisa investir em medidas de estímulo para que trabalhadores tenham acesso a bens e empresas possam superar a recessão. (Crédito:Paulo Guereta/Photo Premium)

Os números do BC mostram que, no fim de fevereiro, a Dívida Bruta do Governo Geral estava em 76,5% do PIB e, somado à atividade fraca, são grandes as chances de a economia brasileira registrar o pior desempenho desde 1901, quando o indicador das riquezas do País começou a ser contado. Para a economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI), Gita Gopinath, o Brasil precisa investir em medidas de estímulo fiscal e monetário para garantir que os trabalhadores tenham acesso a bens e que as empresas possam superar a recessão. “A magnitude e a velocidade do colapso da atividade econômica que se segue à pandemia da Covid-19 é diferente de tudo o que ocorreu em nossas vidas”, afirmou. Apesar do tombo, o FMI avalia que o Brasil poderá se recuperar rápido, caso as medidas de isolamento e controle da doença sejam feitas de modo eficazes. Mas para isso, será preciso tirar o filtro partidário dos discursos, olhar o passado, o presente e o futuro antes de tomar decisões.