Em mais de 40 anos de atuação no mercado financeiro, o economista Paulo Guedes, 69, se destacou por traçar cenários certeiros e se antecipar a tendências que chegavam a extrapolar o mundo das finanças. Sua densidade intelectual está estampada no currículo, já rendeu frutos aos seus negócios e o transformou numa referência teórica no universo dos bancos e casas de investimento, onde reinam o pragmatismo e a agilidade. Nos tempos de Pactual e JGP, instituições que ajudou a fundar, Guedes costumava atrair colegas para discussões após o expediente, em espécies de aulas informais. As reflexões sobre a conjuntura lhe rendem críticas desde o Plano Cruzado e são travadas até hoje em artigos e conversas que mantêm com figuras diversas, de ministros a grupos do mercado.

Numa delas, em 2016, ele vaticinou a analistas a ruptura com a social democracia pelas mãos de um político de fora do sistema. O papel de “outsider” coube a Jair Bolsonaro, capitão reformado eleito presidente pelo PSL, que transformará Guedes num superministro, um czar da economia, em 2019. Não só o hábito das caminhadas na praia deve ficar para trás na mudança do Rio de Janeiro para Brasília. O economista precisará dosar um traço forte de sua personalidade: o misto de superobjetividade com realismo que esbarra no limite da agressividade. É o que profissionais próximos descrevem como “transparência”, “sem papas na língua”, “veemência” e até “cabeça dura.”

Trata-se de um lado que ficou evidente logo após a eleição, num episódio de irritação com uma repórter argentina, criticada por uma pergunta sobre comércio. “O Mercosul não é prioridade. Não é prioridade. É isso que você queria ouvir?”, questionou Guedes. “Você está vendo que tem um estilo que combina com o do presidente, que fala a verdade, que não está preocupado em agradar.” O ex-banqueiro Luiz Cezar Fernandes, que foi sócio no Pactual, acrescenta o adjetivo persistente às descrições do futuro ministro e deixa uma sugestão. “No governo, é esse tipo de coisa, como com a repórter argentina, que ele terá de fazer melhor.”

Formado em economia pela Universidade Federal de Minas Gerais, Guedes tem mestrado pela FGV e é PhD na Universidade de Chicago, berço da ortodoxia liberal, coroada com 29 prêmios Nobel. Chegou a integrar o quadro de economistas da ditadura de Augusto Pinochet no Chile no início dos anos 1980, episódio que originou o termo “Chicago boys”, em referência à veia liberal dos alunos da escola americana, entre os quais o ex-ministro da Fazenda, Joaquim Levy. Há no mínimo 30 anos que Guedes prega a redução do Estado, o fim de uma ordem econômica dirigista e defende a combinação de democracia e mercado. Em 1989, ele foi chamado para desenhar o plano de governo do presidenciável Guilherme Afif, então no PFL. Algumas das medidas que propôs lá trás devem ser implementadas agora, como a independência formal do Banco Central, um dos primeiros projetos a serem atacados pela nova equipe, ainda no processo de transição. “Fomos desenhando um Estado que não atrapalhasse”, afirma Afif, hoje na presidência do Sebrae. “O Brasil virou as costas para uma política liberal por 30 anos. Está voltando agora.”

Ontem e hoje: à esquerda, Guedes como assessor do plano liberal do presidenciável Guilherme Afif, em 1989, com medidas que se repetiram para Bolsonaro

Em Bolsonaro, o economista encontrou um caminho para implementar o choque liberal que acredita ser a solução para os problemas brasileiros. Os dois se aproximaram por meio da ex-procuradora do Distrito Federal Beatriz Kicis, eleita deputada federal pelo PSL. Guedes serviu como o selo econômico que faltava ao capitão – Bolsonaro admitiu desconhecimento na área e classificou o assessor de “Posto Ipiranga”, a quem deveriam ser endereçadas as perguntas sobre o tema. A aproximação permitiu quebrar a desconfiança do mercado sobre as convicções históricas intervencionistas do candidato. O plano da chapa é a representação concreta do que Guedes chamou, em textos, de “experimento da liberal-democracia”, uma aliança de centro-direita na política em torno de um programa liberal na economia.“O Paulo é um liberal ao estilo Margaret Thatcher”, afirma Luis Octavio da Motta Veiga, ex-presidente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que trabalhou com ele no Pactual. “Uma das preocupações dele é criar riqueza a médio prazo para haver menos assistencialismo.”

Tirar o plano liberal do papel pode ser mais difícil do que parece, como evidenciaram as negociações para diminuir o número de ministérios, de 29 para 15 pastas. A incorporação da Indústria e Comércio pelo superministério foi rechaçada pelos industriais (leia mais abaixo), uma crítica que o guru respondeu ao seu estilo. “Vamos salvar a indústria brasileira apesar dos industriais”, afirmou ao confirmar a nova pasta, que incorpora ainda a Fazenda e o Planejamento. Ele também enfrenta críticas sobre a intenção de realizar a abertura comercial no País. As maiores resistências devem vir da área política, para convencer os parlamentares a aprovar a série de reformas que estão previstas para chegar no Congresso. “Será tudo novidade, e sim, ele terá de ser um dos articuladores políticos, faz parte da função”, afirma Fernandes, ex-sócio do Pactual. “Mas a sua base é forte e ele poderá se adaptar.”

Da meca liberal aos bancos: à dir., o prédio da Universidade de Chicago, berço da ortodoxia liberal econômica. Em 1987, Guedes posa à frente de uma mesa de operações do mercado

O objetivo principal das reformas é resolver o problema das contas públicas do País e diminuir o endividamento federal (confira dados abaixo), para afastar de vez a desconfiança sobre a solidez do Estado. Tudo indica que o ajuste será veloz. No passado, Guedes criticou o governo Fernando Henrique Cardoso pela lentidão das reformas, denunciando ainda o que chamou de orgia orçamentária – os aumentos da carga tributária. Além disso, a meta incluída no programa de governo é acabar com o déficit fiscal em 2019, um alvo considerado ousado por boa parte dos analistas. A proposta para reduzir o endividamento inclui um ambicioso plano de privatizações, tema que tem gerado preocupações no mercado. Como militar, Bolsonaro vem se dizendo contrário à venda de ativos em setores estratégicos, como o de energia elétrica, e se opondo a capitais de origem chinesa.

Até que ponto o presidente estará disposto a ceder na venda de companhias públicas e em temas impopulares como a reforma da Previdência é motivo de dúvida. Choques entre Bolsonaro e Guedes estão na conta, mas levantam o risco de uma eventual saída do superministro, um evento que seria mal interpretado por investidores. “A probabilidade de ele sair por desalinhamento é menor do que a de qualquer outro ministro teve com qualquer outro presidente”, afirma Carlos Alexandre da Costa, ex-diretor do BNDES e um dos colaboradores do plano de governo. “Ele só sairia se achasse que a sua contribuição não é mais relevante e isso não vai acontecer tão cedo.” Costa conhece Guedes há 25 anos. Ambos já foram sócios no Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (Ibmec) e mantiveram sempre ativa a troca de ideias sobre a conjuntura, com discussões que trataram de temas como o conceito de sociedade aberta, do filósofo Karl Popper. Reuniões originalmente previstas para durar 30 minutos se estenderam até por seis horas com os debates concentuais.

O maestro do ajuste: desafio do choque liberal será superar as resistências políticas às reformas destinadas a reduzir o peso do Estado

Pela trajetória predominante de mercado, Guedes é, por vezes, classificado como um financista, um rótulo muito simplista para o seu caso. Embora ele seja lembrado pela habilidade de operações que fazia para si próprio, como o day trade (venda e compra de ações no mesmo dia), a sua especialidade sempre foi o olhar mais estratégico. “O que ele fazia de relevante eram as discussões de cenário a médio prazo”, afirma Guilherme Ache, economista da Squadra Investimentos, que trabalhou 17 anos com Guedes no Pactual e na JPG. “Eu nunca vi ele errar um cenário.” Graças a essa visão, conseguiu se antecipar e lucrar com problemas como o congelamento de preços e o confisco, tacadas que fizeram o Pactual a obter um salto de patrimônio de US$ 200 mil, em 1983, para US$ 90 milhões em 1993. A rotina do mercado nunca freou a busca pelo conhecimento. Um de seus ex-funcionários relata ter visto Guedes interromper o expediente mais cedo, se fechar em sua sala por volta das 17h para ler um livro e só terminar às 21h.

A combinação teórica com a experiência prática ficou ainda mais completa com os investimentos feitos na chamada economia real, em setores como educação e saúde – além do Ibmec, as instituições de Guedes investiram no Hortifruti e na HSM Educacional. O Ministério Público Federal instaurou uma investigação para apurar supostas irregularidades deste último envolvendo recursos do fundo de pensão de estatais. A defesa de Guedes nega os problemas. Um profissional que trabalhou com o guru num dos seus negócios expressa a capacidade de trânsito dele pelos mundos teórico, financeiro e real da economia, no que classifica de habilidade “forno e fogão.” Ele rebate o rótulo de financista, também repetido por alguns integrantes da indústria.

Depois de ser chamado pela presidente Dilma Rousseff para aconselhá-la sobre a escolha de um ministro da Fazenda no seu segundo mandato, chegou a vez de Guedes entrar em cena e sentar na cadeira do piloto da economia. Ele terá de se adaptar aos poucos às peculiaridades do cargo. “Ele sempre foi muito inteligente, acima da média”, afirma o economista José Márcio Camargo, amigo desde os tempos de graduação na UFMG. “Ele é persistente, não é uma figura fácil, mas é muitíssimo trabalhador, eu diria obsessivo.” As medidas do choque liberal que sempre defendeu ainda não são conhecidas por completo. Devem vir à tona com mais detalhes nos primeiros 100 dias de governo, considerados cruciais para implementar mudanças mais profundas.

A direção apontada já sustentou um otimismo no mercado nas últimas semanas e agora alcança também o empresariado (leia mais abaixo). “A expectativa da agenda de Guedes é bem positiva”, diz Newton Maia, presidente da International Meal Company (IMC). “As medidas de redução do déficit fiscal e a simplificação de encargos trabalhistas, em conjunto, ajudam na redução do desemprego.” Para que a lua-de-mel perdure será preciso conseguir dar ritmo na agenda de reformas, em especial a da Previdência, que acumula um déficit superior a R$ 200 bilhões. O mundo político já envia sinais de que o tempo é diferente em tramitações no Legislativo. “Todos nós que acompanhamos as contas públicas do governo compreendemos que a reforma da Previdência já deveria ter sido feita”, afirmou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). “Agora, falar quando vai ser votada seria um pouco de, vamos dizer, precipitação.” É um quebra-cabeça que Guedes terá de ajudar a resolver.

Colaboraram: Valéria Bretas e Luana Meneghetti