Em seu período como diretor da BM&FBovespa (atual B3), entre 2010 e 2016, o economista paulista Eduardo Guardia costumava ouvir do chefe brincadeiras sobre os riscos corporativos de seu hobby: a equitação. Em tom descontraído, o então presidente Edemir Pinto considerava o temor de ter de lidar com a “queda do cavalo” e perder uma “peça importante demais” no tabuleiro de gestão da empresa. Não era a primeira vez que as predileções esportivas de Guardia viravam comentários da chefia. Ao visitar uma feira de surf, em meados dos anos 2000, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, tornou pública a prática do seu então secretário estadual da Fazenda de se aventurar no mar. Oficializado como Ministro da Fazenda, na quarta-feira 11, Guardia voltará a lidar com referências esportivas. Dessa vez, ele será considerado um jogador de defesa no “campo” do ajuste fiscal.

A metáfora futebolística explica de maneira simples a maior missão do novo chefe da equipe econômica nos cerca de nove meses em que passará no cargo. Frear pressões políticas e retrocessos no esforço para conter gastos será o suficiente para sua gestão ser considerada vitoriosa. A trajetória de Guardia o qualifica como um dos mais adequados para tal tarefa. Formado em economia pela PUC-SP e pós-graduado pela USP, ele ocupou cargos públicos no passado que tinham como função principal dizer “não”. Em 2002, foi secretário do Tesouro Nacional, depois de passar pelas funções de secretário-adjunto na área e assessor especial do Ministro da Fazenda, Pedro Malan. Entre 2003 e 2006, liderou a Fazenda paulista de Alckmin, onde descobriu a fundo as particularidades do ICMS, da guerra fiscal entre Estados e as divergências regionais nas tentativas de reforma tributária.

Foco eleitoral: principal arquiteto do ajuste fiscal de Temer, Henrique Meirelles se filiou ao MDB. Ele tenta colher frutos na corrida eleitoral para a presidência da República (Crédito:Renato Costa/Framephoto)

O nome do novo ministro é visto com credibilidade no mercado. Não apenas porque ele representa a continuidade do trabalho de ajuste fiscal iniciado por Henrique Meirelles, que deixou o posto para se candidatar à Presidência, mas também por suas próprias convicções. O tema fiscal foi objeto da sua tese de doutorado já em 1999. “É um profissional com uma trajetória brilhante no setor privado e público, já atuou em vários cargos na Fazenda e era a solução natural dentro do ministério”, afirma Mário Mesquita, economista-chefe do Itaú Unibanco. “Não vejo mudança de orientação, de foco, nada disso. É uma solução natural e bem-vinda.”

O ingresso na equipe de Meirelles se deu em junho de 2016. Pela posição firme no cargo de secretário-executivo da Fazenda, o economista criou antipatias no Congresso Nacional, depois de ser identificado como responsável por se opor a pautas que geravam impacto fiscal, como o Refis (programa de refinanciamento de dívidas tributárias). Desses episódios surgiram o apelido de “senhor não” e a percepção negativa que quase inviabilizou a sua nomeação ao cargo após a indicação de Meirelles. Guardia, por exemplo, levantou restrições ao projeto de convalidação dos benefícios fiscais, mas acabou vencido no Legislativo. O deputado Pauderney Avelino (DEM-AM) admite que a falta de traquejo com o Congresso pesa contra o novo ministro, mas destaca suas qualidades técnicas. “O Eduardo Guardia é muito competente, é do ramo”, afirma Avelino “Não é de fácil trato, mas quando você tem argumentos que caminham numa linha possível de negociação, as coisas avançam.”

Técnico na chefia: funcionário de carreira do Banco Central, o secretário-executivo do planejamento, Esteves Colnago substituiu Oliveira na pasta (Crédito:Marcos Corrêa/PR)

Quem o conhece há mais a tempo refuta a pecha de inflexível e atribui a impressão dos parlamentares à função natural do cargo de “vice-ministro” num período tão adverso como o da crise recente do País. “Ele foi experimentado num momento de um governo que veio para corrigir muita coisa que estava completamente sem rumo. Os testes foram prova de fogo e provavelmente ele teve dizer muito mais nãos”, afirma Edemir Pinto, seu ex-chefe. “O Guardia tem uma experiência grande em dizer não, só que de forma muito técnica e convincente.” O ex-presidente da Bolsa destaca como suas principais características a disciplina e o elevado espírito público. “Seu único defeito é ser palmeirense”, diz em tom de brincadeira.

A nomeação do novo ministro coincide com um período de afrouxamento na vigilância sobre projetos fiscais no Congresso. Com o presidente Michel Temer e o ministro Meirelles focados em viabilizar a candidatura presidencial, as pressões eleitorais se fortaleceram no Parlamento, impondo derrotas em textos considerados relevantes para o governo diminuir o rombo das contas públicas. O custo fiscal estimado com a derrubada de vetos em projetos como de renegociação de dívidas de pequenas empresas e de agricultores é de mais de R$ 10 bilhões. Somam-se a outros textos que têm impactos nos cofres e não foram aprovados, como a tributação de fundos, com receita extra estimada em R$ 6 bilhões. Para o economista-chefe do Banco Vontorantim, Roberto Padovani, uma luz amarela se acendeu. “O importante, muito mais do que avançar, é evitar retrocessos”, afirma. “Dificilmente ele vai para o ataque fazer gol. Pode ser um bom defensor, um guardião do que já foi feito.”

Realocado: Dyogo Oliveira deixou o Ministério do Planejamento para assumir a presidência do BNDES (Crédito:AFP Photo / Mauro Pimentel)

Na quinta-feira 12, a nova equipe anunciou a revisão das estimativas econômicas. A expectativa é a de que o déficit fiscal não seja revertido antes de 2021 (confira o gráfico ao final da reportagem). Guardia estava acompanhado do novo ministro do Planejamento, Esteves Colnago, servidor de carreira do Banco Central que também foi promovido do cargo de secretário-executivo. Dyogo Oliveira, seu antecessor, assumiu a presidência do BNDES. Quaisquer afrouxamentos nas contas neste ano aumentam o desafio do ajuste em 2019, que ainda depende do vencedor nas urnas. Para fortalecer o escudo fiscal na Fazenda, Guardia indicou como sua substituta a secretária do Tesouro Nacional, Ana Paula Vescovi, também considerada uma linha dura nos gastos e no esforço contra a ingerência política. A secretária foi uma das responsáveis por vetar um aporte de recursos do FGTS na Caixa Econômica Federal. “Não há nenhuma pressão política aqui”, afirmou Guardia, ao assumir o posto na quarta-feira 11.

Uma das principais atribuições da nova cúpula econômica será encontrar uma saída para contornar, em 2019, limitações impostas pelas três principais regras fiscais: a meta primária, o teto dos gastos e a regra de ouro (que proíbe o governo de se endividar para financiar a máquina). Para lidar com esta última, a nova equipe indicou que pedirá autorização ao Congresso para obter um crédito extra de
R$ 254 bilhões. Entre as pendências, o novo chefe da Fazenda também precisa resolver o impasse da cessão onerosa da Petrobras. O tema vinha ocupando a maior parte do seu tempo na função anterior. Guardia tentou sinalizar um esforço para ir além do freio fiscal e avançar com reformas. Destacou como prioridade a tão aguardada reformulação tributária. Uma revisão do PIS e Cofins integra a pauta legislativa apresentada pelo governo Temer após adiamento da reforma da Previdência. A agenda apresentada pelo novo ministro foi turbinada com a intenção de incluir a mudança nas regras do ICMS, usando a experiência da época em que foi secretário da Fazenda do Estado de São Paulo, quando o tema já era discutido.

Pressão: aprovação da pauta de reformas microeconômicas do governo no Congresso fica mais difícil em ano eleitoral (Crédito:Divulgação)

O deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR), relator do projeto de reforma tributária no Congresso, acredita ser possível avançar no tema com um pacto legislativo que mantenha as fatias atuais no bolo de arrecadação dos Estados. Ele vem discutindo o assunto com Guardia desde ano passado. “O ministro pode fazer em nove meses uma grande transformação na economia brasileira se avançar nesse tema”, afirma Hauly. “O momento de final de mandato é oportuno.” A reforma tributária enfrenta resistências históricas e sua aprovação é vista com ceticismo no mercado. As chances estão ficando cada vez mais baixas para passar matérias que não envolvem a questão fiscal e apontadas como prioritárias pelo governo. A pauta de projetos microeconômicos inclui desde a autonomia do Banco Central até a regulamentação dos chamados distratos (quando um cliente desiste de comprar um imóvel). O destaque é a privatização da Eletrobras, considerado o mais importante deles. A tentativa do novo ministro de Minas e Energia, Moreira Franco, de publicar um decreto para dar início aos estudos enfrentou resistência dos parlamentares e pegou até Guardia de surpresa.

Apesar das dificuldades, há quem conte com avanços no Legislativo. O presidente da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), Luiz França, considera possível a aprovação de temas do setor, como a regulamentação do distrato, no Congresso. O executivo se reuniu com Guardia em janeiro para tratar de questões de financiamento de longo prazo no setor. “Ele é um profissional respeitado no mercado e no governo”, afirma. “A trajetória dele dá todas as condições técnicas para levar em frente os temas do Ministério.” O fomento do mercado de capitais será, inclusive, uma prioridade de Guardia no cargo. Entra aí a experiência de anos no setor privado, como diretor da Bolsa paulistana, executivo do grupo GP Investimentos e sócio-fundador da Pragma Patrimônio, de gestão de fortunas. A missão não será simples. Nos próximos nove meses, Guardia precisará dizer “não” ao Congresso e, ao mesmo tempo, trabalhar para receber “sim” aos seus projetos.