Importante teórico da comunicação do século 20, o canadense Marshall McLuhan (1911-1980) ganhou notoriedade com seus estudos sobre o “fluxo de informações da aldeia global”. Uma de suas análises mais destacadas é a de que “o homem cria a ferramenta, e a ferramenta recria o homem” – um conceito que considera a interferência do desenvolvimento tecnológico na cultura e nas estruturas econômicas e políticas. A tese foi formulada num momento em que não havia internet, mas que poderia representar com exatidão o cenário vivido nos últimos dias. Na quarta-feira (1º), mais de seis centenas de empresas, entre elas gigantes como Coca-Cola, Unilever, Microsoft, Verizon, Ford, Honda, Starbucks, Pepsi, Diageo, Levi’s, Pfizer e Adidas, colocaram em prática um grande boicote publicitário às redes sociais, principalmente o Facebook.

Durante todo o mês de julho, os maiores anunciantes do planeta não colocarão nem um centavo na companhia de Mark Zuckerberg. A razão é clara: se a plataforma não utilizar ferramentas para filtrar conteúdos de ódio, racismo, notícias falsas, fanatismo religioso e político, entre outras mensagens inadequadas sob ótica da lei e dos bons modos, as companhias não irão associar suas marcas ao Facebook. “Continuar anunciando nessas plataformas não acrescentaria valor às pessoas e à sociedade”, justificou a anglo-holandesa Unilever, uma das signatárias da ação e que investiu US$ 42,3 milhões nas redes sociais em 2019. O coro contra o Facebook ganhou novas vozes. “Não há lugar para o racismo no mundo e não há lugar para o racismo nas mídias sociais”, afirmou o CEO global da Coca-Cola, James Quincey, que prometeu reavaliar sua política de marketing. “Esperamos responsabilidade de nossos parceiros em mídias sociais”, completou o executivo. A companhia cancelou os anúncios em mídias socais em julho em todos os países.

Assim como Unilever e Coca-Cola, a gigante Microsoft decidiu suspender os anúncios nas redes sociais nos Estados Unidos e expandiu a postura para seus escritórios pelo mundo. A empresa de Bill Gates, porém, não aderiu formalmente ao movimento Stop Hate For Profit. A preocupação principal está na colocação de seus anúncios ao lado de determinados conteúdos considerados negativos e não necessariamente contra o Facebook. Segundo a Pathmatics, especializada em inteligência e estratégia em marketing digital, a Microsoft gastou US$ 116 milhões em anúncios no Facebook no ano passado, sendo a terceira maior anunciante na rede social, depois de Amazon e Procter&Gamble (P&G). “Nossa experiência nos diz que o meio mais impactante de realizar mudanças genuínas e de longo prazo é por meio do diálogo direto e de ações significativas com nossos parceiros de mídia, incluindo a suspensão de investimentos em marketing”, escreveu o CMO da Microsoft, Chris Capossela, em uma rede de comunicação interna da corporação.

Patrick Kovarik

“Não há lugar para o racismo no mundo e não há lugar para o racismo nas mídias sociais. Esperamos mais responsabilidade e transparência de nossos parceiros” James QuinceY CEO da Coca-Cola.

A Verizon, de telecomunicações, suspendeu os anúncios na rede social. Afirmou que a “tolerância é zero” quando suas políticas de conteúdo são violadas. “Estamos pausando nossa publicidade, até que o Facebook possa criar uma solução aceitável que nos deixe à vontade e seja consistente”, disse John Nitti, diretor de mídia da Verizon. A companhia aplica US$ 1 bilhão por ano em publicidade, em diversos meios e plataformas. A Ford, que gasta US$ 2,9 milhões por ano em plataformas como o Facebook, também foi enfática. “A existência de conteúdo que inclui discurso de ódio, violência e injustiça racial em plataformas sociais precisa ser erradicada”, afirmou a montadora, em comunicado.

Essa primeira iniciativa sincronizada da Era Digital de empresas contra a maior rede social do mundo surtiu efeito. O Facebook anunciou mudanças após suas ações caírem 8,3% na sexta-feira (26), de US$ 235,68 para US$ 216,08. Com isso, a companhia perdeu US$ 74 bilhões em valor de mercado – mais do que o faturamento total em 2019 – e, por consequência, seu fundador viu sua fortuna diminuir US$ 7 bilhões num único dia. Mas, em quatro pregões, o preço das ações já havia se recuperado. Na quinta-feira (2), no fechamento desta edição, as ações operavam acima de US$ 235, num claro sinal de que o mercado recebeu bem o contra-ataque de Zuckerberg. A batalha, no entanto, não está definida. A expectativa é de que o movimento ganhe musculatura global, com pressão das empresas nos cinco continentes. E já tem chegado ao Brasil, com a participação das subsidiárias dessas companhias globais no boicote. Isso porque o País vem ganhando holofotes da mídia internacional e se consolidado como um epicentro da produção e disseminação de fake news. A proliferação de notícias falsas em ritmo pandêmico está, inclusive, sob investigação no Supremo Tribunal Federal (STF), no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e no Congresso por, supostamente, ter influenciado a eleição que resultou na vitória do atual presidente da República, Jair Bolsonaro. Sob protestos de apoiadores do mandatário, as ações foram retomadas no TSE no último dia 30. No dia seguinte, houve também a prorrogação do inquérito das fake news, por mais 180 dias no STF.

PROTESTOS NAS RUAS Nos últimos meses, manifestantes pró-democracia saíram às ruas para se posicionar contra retrocessos. (Crédito:Antonio Molina )

A criação de mecanismos de controle do conteúdo publicado na internet, sem que haja cerceamento da liberdade de expressão, é o grande desafio das redes sociais nesse momento de fogo cruzado. O trunfo dessas plataformas para gerar engajamento é, exatamente, o ponto da discórdia: dar voz a todos, mesmo aos que não estão, necessariamente, qualificados a opinar. “O Facebook, com seus incríveis algoritmos, tem total condição de criar mecanismos para filtrar publicações que ultrapassem os limites da ordem”, afirma o economista e investidor Norberto Zaiet, fundador da corretora Picea Value Investors, em Nova York. “O problema é que, ao fazer isso, a companhia vai contra seu próprio modelo de negócio, no qual, quanto mais as pessoas, anonimamente, leiam e comentem na plataforma, mais há tráfego e geração de receita”.

Esse suposto ambiente de anonimato, porém, é o que gera a falsa sensação de impunidade. “Há muito tempo, crimes na internet, sejam por ações de roubo de informações, sejam por calúnia e difamação, são passíveis de punição no Brasil e no mundo”, afirma o advogado Daniel Figueiredo Filho, especialista em direito criminal e cibercrimes. O problema é que a lei ainda é frágil sobre o tema.

O Marco Civil da Internet, sancionado em 2014, prevê proteção da privacidade e dos dados pessoais, inviolabilidade da intimidade e da vida privada, entre outros pontos regulamentados da vida on-line. Apesar disso, essa lei não prevê punições para quem viola os direitos dos usuários da internet. Outra legislação que tende a reforçar a segurança contra crimes na internet é a Lei Geral de Proteção de Dados (LGDP), que entraria em vigência em agosto deste ano e foi adiada para 2021. A lei chegará com o objetivo de aumentar a segurança para dados pessoais. Para a advogada Natália Brotto, especialista na LGPD, a nova legislação trará uma mudança de paradigma para dar outros direitos aos donos de dados no Brasil. Segundo ela, embora a Constituição já garantisse direitos e o Marco Civil a garantia da proteção de dados, não havia lei geral que protegesse as pessoas físicas de compartilhamento de dados.

MOVIMENTOS ANTIRRACISTAS Convocadas pelas redes sociais, milhares de pessoas em todo o mundo protestaram contra a morte de George Floyd, nos EUA. (Crédito:Ben Hendren/Anadolu Agency)

Nos últimos meses, com a explosão de protestos antirracistas em todo o mundo, a situação parece ter chegado ao limite. Antes mesmo de lançar um xeque-mate em Zuckerberg, as empresas aderiram ao movimento Stop Hate For Profit (“pare de dar lucro ao ódio”, em tradução livre), liderado por grupos de direitos civis dos Estados Unidos, entre eles Anti-Defamation League, NAACP, Color of Change, Common Sense, Free Press e Sleeping Giants. Começou no dia 17 de junho, após o assassinato do segurança negro George Floyd pelo policial branco Derek Chauvin, que o sufocou com o joelho no pescoço. A ação foi gravada com celular por testemunhas e o caso correu o mundo. Os protestos iniciados nas ruas dos Estados Unidos se espalharam pelo planeta, graças às convocações por meio das redes sociais – em uma prova de que o mundo virtual propaga também coisas boas. “A reação da rede social vai mostrar o que ela quer ser. Ela vai ter de decidir se será responsável pelo que veicula ou se compra a briga com as empresas e seja apenas uma plataforma para divulgar esse conteúdo”, aponta Alexandre Bessa, professor de canais digitais da pós-graduação da ESPM.Por outro lado, ao mesmo tempo em que as passeatas tomam as ruas, inúmeras postagens preconceituosas, de supremacia branca e de fake news continuaram a ser disseminadas.

Muitas delas ao lado de manifestações a favor da democracia, contra o ódio e de notícias verdadeiras. A coalizão de entidades sociais iniciou, então, a campanha contra o imobilismo das plataformas digitais, que deixam propagar sem controle esse conteúdo nocivo. O grupo enviou mensagem às grandes companhias que anunciam no Facebook, com alerta sobre os riscos envolvidos na publicidade na gigante americana, que também é dona do Instagram. “Todos os dias, vemos anúncios de empresas colocadas ao lado de conteúdo odioso, ocupando o mesmo espaço que grupos extremistas de recrutamento e campanhas de desinformação prejudiciais”, diz a carta. “Seus dólares para compra de anúncios estão sendo usados pela plataforma para aumentar seu domínio no setor às custas de comunidades vulneráveis e marginalizadas, que muitas vezes são alvos de grupos de ódio no Facebook.” A ação das instituições que pressionou os anunciantes não levou ninguém às ruas. Tudo foi feito com muito engajamento justamente na internet. “O meio é a mensagem”, já ensinava Marshall McLuhan.

 

COMPLIANCE Enquanto a maioria das empresas aderiu formalmente ao movimento, outras, como a Microsoft, resolveram suspender os anúncios conforme orientação sugerida pelo grupo de organizações, mas não efetivaram ligação com ele. Em comum, todas as corporações empresariais que declararam guerra às fake news e aos conteúdos violentos evitam se associar a plataformas digitais que vão contra suas políticas de governança e compliance, com incentivo à diversidade e à inclusão. Neste momento de pandemia, em que mais de 2 bilhões de pessoas no mundo estão em algum tipo de isolamento, as redes sociais ganharam importância e audiência. E a sensibilidade aos temas expostos, inegavelmente, também têm maior relevância. “Havia a necessidade de atitudes mais práticas para combater a intolerância. Acordamos”, afirma José Maurício Conrado, doutor em Comunicação e Semiótica e professor de Publicidade e Propaganda da Universidade Mackenzie. “O desafio colocado ao Facebook é ser mais transparente e alinhado às necessidades da sociedade”, diz.

CONTRA-ATAQUE Depois de perder bilhões em um único dia, fundador do Facebook reage e recupera grande parte dos prejuízos. (Crédito:Anthony Quintano)

O Presidente do Brasil e o gabinete do ódio

O presidente Jair Bolsonaro é o líder mais popular no Facebook na América Latina, com cerca de 10 milhões de curtidas e 13 milhões de seguidores, segundo o ranking World Leaders on Facebook, feito pela Burson Cohn&Wolfe (BCW), agência global de comunicações. No Instagram, o presidente possui 17 milhões de seguidores e no Twitter, 6,6 milhões. Mas isso não é uma boa notícia para ele. Sua popularidade virtual tem sido alavancada por polêmicas, pela suspeita de uso de robôs para espalhar de forma rápida e em massa mensagens que, muitas vezes, contêm informações falsas. Utilização indiscriminada e por agentes públicos nas plataformas que também é criticada pelo movimento Stop Hate For Profit. “As marcas perceberam que as redes sociais são usadas como instrumento político e geopolítico, com grande força principalmente no Brasil”, afirma o professor José Maurício Conrado, especialista em comunicação digital na ESPM.

A própria eleição de Bolsonaro, em 2018, é questionada pela possibilidade de uso de fake news. O caso é investigado por senadores e deputados em Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), instaurada em setembro de 2019. Os congressistas apuram os ataques cibernéticos que atentam contra a democracia e a utilização de perfis falsos para influenciar os resultados da eleição. Cometimento de crimes de ódio também está entre os objetos de investigação, que tem prazo até outubro para concluir os trabalhos. Uma das linhas de averiguação é a de que Bolsonaro alimenta o chamado “gabinete do ódio”, estrutura que estaria montada dentro do Palácio do Planalto, gerida por assessores ligados à família do presidente, principalmente dos filhos Flávio (senador), Eduardo (deputado) e Carlos (vereador no Rio de Janeiro). O modus operandi, denunciado por ex-apoiadores, funciona com a criação de perfis e mensagens falsas com o objetivo de atacar adversários e aliados considerados incômodos, inclusive ministros. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e o STF (Supremo Tribunal Federal) são alvos constantes do grupo. “É uma estratégia pensada, ensaiada. É assim que se propagam as fake news e a campanha de ódio”, afirmou a relatora da CPMI das Fake News, a deputada Lídice da Mata (PSB-BA), ao site Congresso em Foco. A parlamentar vê as digitais do presidente Jair Bolsonaro na disseminação de ataques. “O gabinete do ódio, o presidente da República e seus filhos estão diretamente envolvidos.”

Paralelamente, o Congresso Nacional analisa projeto de lei que promete combater as fake news. A proposta visa implantar um marco inédito na regulamentação do uso das redes sociais, criando a chamada Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. As plataformas digitais, como Facebook, Twitter e WhatsApp, deverão colocar em prática uma política de controle da disseminação de notícias falsas da internet. Com alguns trechos retirados, o Senado aprovou o texto base na terça-feira (30). O avanço do projeto é considerado uma derrota para o governo Bolsonaro, que é contra a iniciativa.