Medidas equivocadas de Jair Bolsonaro afetam o crescimento econômico do País. E pode piorar.

Economista pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e mestre em administração pública e governo, Felipe Salto é, desde novembro de 2016, o primeiro diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado Federal. Coautor dos livros Finanças Públicas: da Contabilidade Criativa ao Resgate da Credibilidade, com Mansueto Almeida, e do Contas Públicas no Brasil, em parceria com Josué Pellegrini, Salto acompanha com lupa as manobras fiscais que o governo de Jair Bolsonaro vem tentando praticar. “O quadro já não era positivo no pré-pandemia, e será muito pior no pós-pandemia”, disse nesta entrevista à DINHEIRO. “Vamos estar em condições piores por causa dessas medidas equivocadas do governo.”

DINHEIRO — Qual a sua avaliação sobre o atual momento fiscal do Brasil?
FELIPE SALTO — O ponto central é que, principalmente a PEC dos Precatórios, traz duas inovações que perturbam o quadro de expectativas e de avaliação de riscos. Dessas duas mudanças, a primeira tem a ver com o retroativo do teto de gastos, que na prática é uma mudança da inflação de junho para a inflação de dezembro, acumulada em 12 meses. Essa subida do limite vai ser muito maior do que a calculada para pagar o novo Auxílio Brasil.

E a segunda?
A segunda medida é a própria mudança dos precatórios, com uma limitação para o pagamento dessas despesas, que são obrigatórias. Exatamente por essa razão, a limitação leva a uma percepção maior de risco e de que as regras do jogo podem mudar no meio do caminho. É por isso que os juros estão aumentando, ­não só a Selic — para correr atrás do controle inflacionário —, mas também os juros futuros, que para o ano que vem já estão acima de 11%.

Como isso afeta a economia?
Isso afeta a dívida pública e também a perspectiva de crescimento econômico. A visão hoje do mercado é a de que os juros vão ter de ficar altos por mais tempo, com uma subida da Selic mais intensa a partir de agora. Isso vai afetar o crescimento econômico no ano que vem, pelo menos.

O Auxílio Brasil é importante para dar suporte aos mais pobres, mas não há dinheiro para pagar. Como sair dessa encruzilhada?
Regra fiscal tem de ser cumprida. O teto de gastos pode ter problemas de desenho, pode ser, eventualmente, aprimorado, mas o caminho para preservar as regras do jogo e pagar esse auxílio novo, ou mesmo um incremento no próprio Bolsa Família, seria cortar despesas.

Como fazer isso?
Deveria cortar gastos não obrigatórios. E também discutir melhor a distribuição das emendas parlamentares. Das atuais emendas, quase metade vai para a saúde, de um volume de cerca de R$ 16 bilhões. A outra metade poderia agora ser direcionada para esse gasto social do auxílio. Além disso, tem os precatórios do Fundef, que são os precatórios da educação dos anos 90, que, ao meu ver, não estão sujeitos ao teto. Aí são mais R$ 16 bilhões.

Então existem alternativas…
Com aproveitamento de certas brechas que existem no próprio teto. Poderiam ajudar a endereçar esse aumento de gastos sociais sem gerar toda distorção, essa turbulência nas expectativas e abertura de um jogo que se perde o controle. Não temos como saber quais serão as próximas etapas. Altera-se o teto agora, e depois? Como é que a gente volta a uma situação de equilíbrio fiscal? Qual vai ser a regra do jogo a partir de 2023?

Qual a percepção dos investidores em relação à gestão de Paulo Guedes e Jair Bolsonaro, principalmente aqueles que esperaram um governo mais liberal?
A melhor forma de avaliar isso é pela taxa de câmbio e pelos juros, que estão fora de lugar.

“Os juros mais altos vão derrubar a demanda, o consumo, o investimento e encarecer o crédito” (Crédito:Eduardo Matysiak)

Os indicadores macroeconômicos respondem?
Os juros estão aumentando muito rapidamente. E a perspectiva para a taxa de câmbio é ainda de grande volatilidade e o dólar sobrevalorizado. Isso mostra que as expectativas estão se ajustando a esse quadro de maior incerteza. Quando se tem mais incerteza, o fluxo de capitais entrante é menor ou é de pior qualidade. De outro lado, a taxa de juros precificada aumenta porque o mercado antecipa déficits adicionais e exige mais remuneração. Isso tudo afeta o crescimento econômico, e isso é muito ruim para a economia.

A situação foi agravada pela pandemia?
O quadro já não era positivo no pré-pandemia. E ele será muito pior no pós-pandemia.

Por quê?
Por causa dessas medidas equivocadas do governo. O que se tem aí é um conjunto de medidas que beiram ao populismo fiscal. O governo se acostumou a fazer populismo fiscal.

De que maneira?
O governo abre espaço de mais de R$ 90 bilhões para fazer gastos em ano eleitoral. Uma parte disso vai para o gasto social. Uma segunda parte vai para o aumento da inflação, que vai comer uma parte desse dinheiro (para o social) porque uma fatia dos gastos do governo é indexada à inflação. Uma terceira parte vai para outros tipos de gastos, como emendas pulverizadas. Então, a percepção a respeito disso é a pior possível.

Nesse ritmo de gastos, há riscos de um colapso das contas públicas?
Não estamos num quadro de insolvência porque o balanço externo do Brasil é bastante equilibrado. Temos reservas elevadas e temos no balanço de pagamentos uma situação razoável. Diferentemente do que ocorreu em outras crises, nos anos 1980, principalmente, quando a gente tinha uma dependência grande de financiamento público vindo de fora. Isso não acontece hoje. Essa é a única salvaguarda que temos. Por isso não está pior.

Em quanto tempo o Brasil pode retomar o equilíbrio fiscal?
É difícil saber porque depende muito do que vai acontecer na política, e de quem vai assumir o governo em 2023. As sinalizações dos candidatos mais bem posicionados nas eleições do ano que vem vão ajudar a clarear melhor as projeções.

Na parte econômica, 2022 já está perdido?
O ano de 2022 está dado. Será um ano de baixíssimo crescimento, com inflação ainda pressionada, embora menor do que a de 2021. Os juros mais altos vão derrubar a demanda, o consumo, o investimento e vai encarecer o crédito. Já 2023 dependerá do que a política sinalizar no fim de 2022.

O que pode acontecer de pior em 2022?
Os riscos já estão precificados. De certa forma, o mercado já incorporou a ideia de que algum estouro no teto haverá, de que o gasto será maior, de que não será o fim do mundo porque também houve contenção de despesas nos últimos anos em razão de congelamento de salários de servidores, exceto de militares, que tiveram aumento, e também a reforma da Previdência, que tem gerado alguma economia.

O que o mercado enxerga de tão ruim?
O fato é que já antecipa um cenário fiscal pior em 2022 do que se desenhava meses atrás, antes de a PEC dos Precatórios ser apresentada. É isso que está dado. Juros na casa de 11% ou acima. Dívida pública aumentando — de agosto para setembro foi de 82,7% para 83% do PIB. O gasto com juros do governo já está em R$ 55 bilhões ao mês, o que representa um crescimento de 40% em relação a setembro do ano anterior.

Existe o risco de alguma nova estripulia fiscal na manga do governo?
Pouco provável que mudanças adicionais à PEC avancem. Uma reforma tributária ruim saiu do radar.

O Auxílio Brasil, de R$ 400, terá um efeito positivo sobre a economia real?
Aquilo que tiver de positivo sob o ponto de vista do impacto sobre a demanda agregada deve ser neutralizado pelos juros e pela inflação.

Ou seja, efeito nulo?
Com a inflação alta, parte do ganho das famílias será corroída. De outro lado, a alta da Selic, necessária para correr atrás dessa inflação descontrolada, vai também jogar a economia para baixo. Então, com o Auxílio Brasil o governo dá com uma mão e tira com a outra. É claro que o efeito líquido tende a ser positivo, mas não a ponto de produzir um crescimento econômico maior.

“O que o Auxílio Brasil tiver de positivo sob o ponto de vista do impacto sobre a demanda agregada deve ser neutralizado pelos juros e pela inflação” (Crédito:Mauro Akiin Nassor)

Mas os estímulos não serão suficientes?
Os estímulos que foram dados no ano passado somaram R$ 524 bilhões. Neste ano, serão mais R$ 136 bilhões, provavelmente. No ano que vem, serão R$ 47 bilhões. Então, esse volume é muito menor. Agora, os outros gastos, abertos pela própria mudança do teto, podem até ser maiores do que isso, mas não acho que vai ser suficiente para amenizar a expectativa de um crescimento baixo.

Se a desaprovação do governo Bolsonaro piorar em 2022, existe o risco de um tudo ou nada na área fiscal para tentar reverter?
Existem limitações pela lei eleitoral em ano de eleição, sob o guarda-chuva da Lei de Responsabilidade Fiscal. Essas travas não permitem muita estripulia. Isso está mais ou menos dentro do que já foi precificado. Não acho que vai ser um quadro de desastre. O que vai acontecer é o que já estamos vendo agora.

Era de se esperar uma reação agressiva e, aparentemente atrasada, do Banco Central no controle da inflação?
O Banco Central trabalha sob um regime de metas de inflação. Em algum momento, o BC precisaria apertar a política monetária. Só que isso, agora, vai ser exacerbado. Porque o risco fiscal aumentou demais em razão da PEC, os juros precificados estão mais altos e, como se diz, o BC está behind the curve, ou seja, está abaixo da curva de mercado. É um trade off.

Por qual motivo?
Porque o Banco Central leva em conta também o desemprego e a ociosidade da economia, que a gente chama de ato do produto. O BC dá peso a isso na decisão. Então, se aumenta demais a taxa de juros, gera uma recessão, no limite. Essa vai ser a arte. O poder agora está na mão do Banco Central.

O BC falhou em não conseguir segurar a inflação lá atrás?
Na Instituição Fiscal Independente não temos mandato para dizer o que deve ser feito ou não pelo Banco Central. Agora, uma das nossas funções é avaliar o impacto fiscal das políticas públicas, inclusive das políticas monetária, creditícia e cambial. A gente sabe que em um regime de metas de inflação, o que o Banco Central faz quando precisa segurar os preços e quando as expectativas estão desancoradas é aumentar os juros. Esse é o instrumento que ele tem. A culpa do baixo crescimento não é do BC.

E o câmbio a R$ 5,50, não é responsabilidade também do BC?
Não. O regime de câmbio é flutuante no Brasil. O Banco Central age para reduzir as flutuações, a volatilidade, o sobe e desce. O preço que se paga pelo dólar é culpa da política fiscal.