No modelo de presidencialismo de coalizão brasileiro, a tramitação de cada projeto no Congresso é vista como um termômetro da fidelidade da base de apoio parlamentar. Na terça-feira 18, o governo viu suas armas da articulação política jogadas ao chão com a resposta dos senadores a uma das principais bandeiras de gestão Jair Bolsonaro. Por 47 votos a 28, o Senado derrubou o decreto que facilita o porte de armas no Brasil. Foi um grito de independência do Legislativo. E ecoou nas expectativas dos economistas sobre a reforma da Previdência, a pauta ecônomica mais urgente do Planalto para uma retomada robusta do PIB. Sinais da fragilidade aumentam o temor de uma desidratação ainda maior no texto que revisa o sistema de aposentadorias. O prazo de tramitação também tende a aumentar.

Resistência: protesto contra a reforma mobilizou milhares na sexta-feira 14 (Crédito:Alex de Jesus / O Tempo / Agência O Globo)

O relatório da comissão especial da reforma, apresentado na quinta-feira 13, deixou claro que o governo terá de abdicar de temas caros à equipe econômica. Assim como o decreto das armas tinha um um apreço pessoal de Bolsonaro, o sistema de capitalização levava a assinatura do ministro Paulo Guedes. Não passou, contudo, no crivo do relator Samuel Moreira (PSDB-SP). O deputado admitiu que fez um esforço para reunir os temas passíveis de aprovação no plenário. O texto ainda será votado na comissão especial e terá de ser aprovado por maioria qualificada em duas votações na Câmara e no Senado. As modificações foram significativas. Caíram o aperto nas regras de aposentadoria para idosos de baixa renda (BPC) e as mudanças na aposentadoria rural, como já se esperava. Estados e municípios foram excluídos do texto.

No projeto original, o tempo mínimo de contribuição para mulheres seria elevado dos atuais 15 anos para 20 anos. Isso também foi retirado. Os servidores públicos foram os mais beneficiados. Com a introdução de uma nova regra de transição, aqueles que ainda possuem direito à aposentadoria integral na administração pública poderão se aposentar com 57 anos (mulheres) e 60 anos (homens). No texto original, isso só seria possível aos 62 anos e 65 anos, respectivamente. “Cedemos ao lobby dos servidores públicos, que eram os privilegiados”, afirmou Guedes, após a divulgação do relatório. Dados do Tesouro Nacional mostram que o déficit gerado por um servidor público aos cofres da União é dez vezes maior do que o de um aposentado do INSS. As críticas de Guedes foram rebatidas em seguida pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia. “O governo é uma usina de crises”, afirmou. “Blindamos a reforma das crises que são geradas todo o dia pelo governo.”

EMPECILHO O atrito entre o ministro e o presidente é mais uma pedra no caminho e pode contribuir para que o texto só vá a Plenário no segundo semestre. As desidratações do relatório reduziram a economia de R$ 1,2 trilhão para R$ 913,4 bilhões. E essa conta inclui o aumento na tributação dos bancos, acrescentada pela comissão especial. “Perderam-se alguns anéis para manter outros anéis e os dedos”, afirma o professor da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), Helio Zylberstain. “Mas vamos ter de voltar a falar em capitalização porque o sistema de repartição atual não se sustenta mais.” No modelo vigente, os trabalhadores da ativa contribuem para pagar os inativos. Na capitalização, contas individuais dos contribuintes seriam investidas para gerar mais recursos no futuro.

O cenário mais provável é que o governo opte por enviar um projeto separado de capitalização mais adiante. O próprio texto do relator ainda pode ser objeto de mudanças. “No final dessa negociação vai sair uma terceira proposta”, afirma Jason Vieira, economista-chefe da Infinity Asset Manegement. “Em termos de economia fiscal, o texto é satisfatório, mas abre um precedente perigoso com os servidores públicos para que grupos de pressão exijam ainda mais.” Para ele, a noção de urgência está consolidada no Congresso e o mais importante é discutir a forma e o prazo. Sem sinais de avanço, o Banco Central seguirá desconfortável para cortar os juros, na contramão da tendência mundial. Na quarta-feira 19, o Comitê de Política Econômica (Copom) manteve a taxa básica em 6,5% pela décima vez. É um sinal claro de como a reforma se contrapõe às outras variáveis favoráveis à economia.