Foram seguidas demonstrações de maus modos. Nenhuma delas aleatória. Pelo contrário. Deliberadas. Ataque ao mundo árabe prometendo transferir a embaixada brasileira em Israel para Jerusalém. Desprezo ao Mercosul. Acusações diretas de que a China inventou e espalhou de forma intencional o coronavírus. Grosserias com o presidente e a primeira-dama franceses. Desprezo a acordos ambientais com europeus. Tudo parceiro comercial decisivo e estratégico. Até mesmo os Estados Unidos ­— poupados pelo alinhamento ideológico da turma de Jair Bolsonaro a Donald Trump —, agora sob nova direção, entraram na artilharia. O Itamaraty derreteu e a conta veio. Alta. Em forma de embargos, restrições, ameaças e projetos de leis.

Ao jogar no lixo sua tradição de não envolvimento e neutralidade em questões de política externa e se tornar um pária global, o Brasil comprou guerra com quem não devia: seus principais parceiros comerciais. A China bloqueia há três meses carnes de produtores do País. No começo do mês, a UE decidiu encaminhar ao Parlamento Europeu proposta de proibir a venda nos 27 países do bloco de produtos extraídos de áreas desmatadas. E nos Estados Unidos parlamentares têm cedido a lobistas da pecuária local para também adotar medidas contra a carne brasileira. Em resumo, a reação estrangeira é sentida num setor que apoiou fortemente o presidente Bolsonaro, o agronegócio.

Tentando colocar panos quentes, o chefe do Itamaraty, Carlos França, segue em contato com lideranças mundiais com o objetivo de diminuir os efeitos das falas de Bolsonaro. Em público, França garante que foram feitos avanços. “Já demos passos importantes para novos acordos comerciais e metas voltadas ao meio ambiente”, disse em evento após a COP-26. Apesar do otimismo do ministro, dentro e fora do Brasil o clima é de incerteza. Christiane Alborguinni Letto, ex-diplomata brasileira na França e membro da comissão de assuntos internacionais da Organização das Nações Unidas, é uma das que temem o futuro. “O Brasil levou anos para construir uma imagem amistosa, mas sem submissão. Bastou um governo para reverter décadas consolidando algo”, disse.

PARCERIA ABALADA Um dos maiores parceiros comerciais do Brasil, a China de Xi Jinping suspende importação de carne e causa prejuízos de US$ 1,8 bi ao País de Jair Bolsonaro. (Crédito:Alan Santos)

O ex-chanceler Celso Amorim (ministro nos mandatos de Lula) é outro crítico à postura do governo. Segundo ele, as últimas aparições internacionais de Bolsonaro, em especial no encontro do G20 realizado em outubro, foram os episódios de maior isolamento do Brasil com o mundo. “Nos meus 60 anos de diplomacia nunca vi nada parecido”, disse. Para o ex-ministro o Brasil perde de muitas formas e acabará “enterrado mundialmente” se nada for feito.

A resposta ao modo bolsonarista de tratar parceiros veio a galope. E sem bases consistentes. Prova de que a reação não é uma decisão técnica, e sim política de governo contra Brasília. A China usou o argumento de dois casos atípicos de vaca louca em Minas Gerais e Mato Grosso para suspender a compra de carne de qualquer estado do País. A medida adotada no início de setembro, e esperada para durar duas semanas, se encaminha para o terceiro mês ­— apesar da documentação entregue comprovar a sanidade do rebanho. Na terça-feira (23), houve um pequeno relaxamento e Pequim liberou lotes certificados antes do embargo. A decisão não resolve o problema. Só reduz um pouco os prejuízos. “Não há motivos sanitários para a medida se manter”, disse o diretor técnico da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Bruno Lucchi.

SOJA No caso dos produtores de soja e milho, o que tira o sono é a ameaça da União Europeia em barrar qualquer commodity agropecuária proveniente de área desmatada legal ou ilegalmente. Isso porque, afirmou Sérgio Mendes, diretor-geral da Associação Nacional dos Exportadores de Cereais (Anec), “o embargo seria a maior injustiça do mundo”. Explica-se: em 2006, a Anec e a Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove) — que juntas representam 90% dos produtores da oleaginosa — assinaram a moratória da soja. O compromisso determina que o mercado exportador não comprará grãos de áreas degradadas pelo desmatamento.

O documento foi ratificado ao menos três vezes de lá para cá, tornando-se ainda mais rigoroso sobre qualquer plantação na Amazônia, e a produção passou a ser acompanhada em reuniões bimestrais com ongs como WWF-Brasil e Greenpeace. Hoje o monitoramento é todo por satélite. Se a análise dos dados for feita corretamente não há o que temer segundo o executivo. A Europa não quer saber e se a lei passar não vai diferenciar árvore derrubada ilegalmente da árvore derrubada legalmente. Vai barrar e pronto. A questão, afirma Mendes, “é que a ilegalidade permitida fere a imagem brasileira e respinga no nosso setor”. O prejuízo se a lei for promulgada? “É incomensurável. Deus me livre.”

Mateus Bonomi

“Nos meus 60 anos de diplomacia nunca vi nada parecido” Celso Amorim ex-ministro de relações exteriores.

Entre entidades e especialistas do agronegócio, a ligação dos embargos e das ameaças a possíveis retaliações comerciais com a falta de tato diplomático do governo Bolsonaro não é tratada abertamente. Mas há indícios de que algum caroço existe embaixo desse angu. O principal deles é o silêncio de entidades. Caso da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec) e da Associação Brasileira de Frigoríficos (Abrafrigo), que simplesmente se calaram e não comentam o tema. A Associação dos Produtores de Soja e Milho (Aprosoja) preferiu divulgar uma nota oficial em que afirma que a “iniciativa [da Europa em proibir mercadorias de área desmatada] é uma afronta à soberania nacional e coloca a conversão de uso do solo permitido em lei na mesma vala comum do desmatamento ilegal”.

A entidade esqueceu de mencionar que o desmatamento ilegal cresceu na gestão do governo Bolsonaro atingindo mais de 13 mil km2 de Amazônia em 2021. Por essas é que a Europa diz, “sim, é isso mesmo”. Usa o argumento de que as leis de desmatamento legal podem ser frágeis ou pouco fiscalizadas nos países fora do bloco. E o Brasil demonstrou nos últimos três anos o que pensava a respeito, com a política de “passar-a-boiada”, de Ricardo Salles, ex-ministro hoje às voltas com a Justiça. Sob condição de anonimato, um membro de uma entidade representativa do agronegócio foi taxativo ao comentar o assunto. “É evidente que o desgoverno nas ilegalidades cometidas na Amazônia e na inabilidade político-diplomática está por trás das manobras (dos parceiros comerciais brasileiros).” Só o impacto na balança comercial com o embargo da China, segundo o Itaú BBA, já é de US$ 600 milhões por mês — US$ 1,8 bilhão nestes três meses — e o prejuízo para o produtor que cria gado confinado com destino à China chegou a R$ 1 mil por cabeça.

INTERESSES Para os especialistas, é muito difícil confirmar de maneira assertiva a ligação entre as retaliações ao agronegócio com a falta de traquejo diplomático. César Castro, especialista em Agronegócio do Itaú BBA, pondera: “Sem dúvida envolve governo e diplomacia, mas ninguém sabe a real motivação da China”, afirmou ao defender que há um grande componente comercial em ambos os casos, já que o argumento dos Estados Unidos para um possível embargo chega de carona com o da China. Oficialmente, é uma questão sanitária, conforme disse Ethan Lane, vice-presidente de Assuntos Governamentais da NCBA, entidade que defende os interesses dos pecuaristas americanos. “O histórico ruim e a falta de transparência levantam sérias dúvidas sobre a capacidade do Brasil de produzir gado e carne bovina em um nível de segurança equivalente ao dos produtores americanos”, afirmou. “Se eles não puderem cumprir essa barreira, seu produto não terá lugar aqui.” Na prática, os americanos fazem o que sempre fizeram: protegem o lucro de seus produtores. Quem não fez isso foi Brasília.

CRIME AMBIENTAL Mais de 13 mil km2 de Floresta Amazônica foram devastados sob os olhos lenientes do governo federal. (Crédito:Antonio Scorza)

O fator comercial existe? Sim. A participação da China nas exportações brasileiras de carne subiu de 20% em 2019 para 60% em 2020. Em setembro, mês em que foi anunciado o embargo, das 187 mil toneladas de produto in natura exportadas, 112 mil foram para o país de Xi Jinping. Só que por lá, o governo luta para recompor o plantel de suíno com um modelo mais profissional, o que segundo o professor Felippe Serigati, coordenador do mestrado profissional em Agronegócio da FGV, colocou o Brasil na mira. “O novo modelo exige mais ração. Com a alta no preço dos grãos e aumento da oferta de carne suína no mercado doméstico, muitos produtores passaram a operar no vermelho”, afirmou. Barrar a carne bovina importada pode ser uma tentativa de recompor os preços. A mesma lógica vale para os Estados Unidos. Segundo César Castro do Itaú BBA, ainda que a participação dos EUA represente apenas 3% da balança comercial nacional, o potencial de crescimento do Brasil assusta. “Nossas exportações para lá cresceram 200% no último ano”, afirmou.

As motivações comerciais existem, é evidente, e sempre existirão. Aliás, esse é o primeiro papel da diplomacia em tempos contemporâneos. Mas fosse somente essa a causa, as retaliações poderiam ter ocorrido em diferentes momentos. E isso não aconteceu. Para entender o contexto de hoje será preciso voltar na história exatamente 60 anos. Em 1961, passadas duas grandes guerras e longos períodos de pouco diálogo, foi assinado em Viena, na Áustria, um documento que definia os termos para o desenvolvimento diplomático dos países signatários. “Cabe à diplomacia promover relações internacionais amistosas; proteger os interesses da nação e respeitar o interesse do outro; preservar a identidade cultural, econômica e científica das partes envolvidas e guiar a diplomacia como uma política de interesse de Estados, não de governos”. É disso que se trata.