Formado em Análise e Desenvolvimento de Sistemas, Givanildo Pereira, 20 anos, é um brasileiro empreendedor. Em meados de 2020, durante a pandemia, ele percebeu uma deficiência das companhias de logística para atender a comunidade onde mora. Em vez de reclamar do problema, ele enxergou uma oportunidade. Seguiu o caminho de empresários como Jeff Bezos, o fundador da Amazon, e criou sua própria prestadora desses serviços. Com oito meses de atividade, a empresa de Pereira realiza 100 entregas todos os dias e emprega sete pessoas, entre entregadores e auxiliares administrativos. O empresário espera triplicar o número de colaboradores e multiplicar por seis os despachos diários, assim que conseguir seu primeiro financiamento. Mesmo sem experiência, Pereira conseguiu colocar em pé um negócio de sucesso em poucos meses durante uma pandemia. Em qualquer lugar, haveria bancos dispostos a financiar seu crescimento, assim como investidores interessados em associar-se a ele. No entanto, para os bancos, a Brasil Favela Express, que atende os 46,6 mil moradores dos 15,9 mil domicílios da comunidade (mas pode chamar de favela) de Paraisópolis, na zona Sul de São Paulo, não existe.

As histórias de Pereira, de sua empresa e das vidas que ela consegue transformar poderiam se perder facilmente, não fosse pelo trabalho de dois homens. Um deles é o empreendedor social Gilson Rodrigues, 36 anos. Nascido na Bahia, ele mora em Paraisópolis desde os cinco. Sua trajetória é daquelas comuns no Brasil. Ficou órfão de mãe aos nove anos. Ele e os 13 irmãos e irmãs foram criados por quem se dispusesse a alimentar mais uma boca. O que fez a diferença em sua vida foi uma bolsa de estudos da seguradora Porto Seguro. Ela permitiu que estudasse informática, capacitando-o para ser um representante comunitário e atuar em favor dos moradores de Paraisópolis.

O outro protagonista desta história é o pernambucano Jeronimo Ramos, de 63 anos. Ele nasceu em um bairro popular do Recife, formou-se em propaganda e marketing e trabalhou a vida inteira como bancário, especializando-se em microcrédito. Juntos, Rodrigues e Ramos colocaram em pé uma iniciativa inédita no Brasil. Em parceria com o G10 Favela, associação que reúne as dez maiores favelas brasileiras, ambos lançaram o G10 Bank. É uma instituição financeira, uma Empresa Simples de Crédito (ESC), dedicada a financiar os empreendedores que brotam das vielas das comunidades e cujo acesso ao crédito é tão tortuoso quanto os caminhos que eles percorrem todos os dias.

Os objetivos são ambiciosos. O primeiro banco das favelas do Brasil, que começa a operar ainda em fevereiro, pretende estabelecer pontes entre o sistema financeiro formal e a economia paralela e nada desprezível das comunidades. As favelas são ambientes carentes e violentos, mas não miseráveis. Segundo estimativas da empresa de pesquisas Outdoor Social Inteligência, os 14 milhões de brasileiras e brasileiros que moram em comunidades têm um potencial de consumo de R$ 160 bilhões por ano. Para comparar, se a “Favela S.A.” fosse uma empresa, ela seria a terceira maior do País em faturamento, perdendo apenas para Petrobras e JBS, segundo a edição mais recente do anuário AS MELHORES DA DINHEIRO. A informalidade faz com que esse dinheiro não circule além dos limites das comunidades, o que afasta os negócios formais e limita o sucesso dos empreendedores locais como Pereira.

AVANTE O objetivo do G10 Bank é impedir que esse potencial fique estagnado. “O governo não vê as pessoas na favela, e os bancos também não”, disse Rodrigues. “Na pandemia isso ficou ainda mais claro. E, se nós não tomássemos medidas concretas para ajudar a população, ninguém iria fazer.” A saída foi mobilizar os moradores para enfrentar a doença e acelerar os projetos de microcrédito, de modo a fazer a economia local retomar sua atividade. Além de estabelecer uma rede de apoio aos micro e pequenos empreendedores, o G10 Bank proporciona aulas de gestão financeira e de administração para que os empresários consigam fazer o negócio decolar.

Rodrigues entrou com seu conhecimento de Paraisópolis e da dinâmica das favelas, e Ramos trouxe na bagagem a experiência acumulada em mais de 15 anos trabalhando com microcrédito. Ele foi um dos formuladores do premiado programa do Banco ABN Amro, depois assumido pelo Santander. O banco espanhol foi o primeiro a instalar agências em duas grandes favelas, Paraisópolis e Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro. “Tive o privilegio de trabalhar com Fabio Barbosa, ex-presidente do ABN Amro e do Santander”, disse Ramos. “Ele costumava dizer que não se pode ir bem em um país que vai mal.” No início da década de 2000, o mercado financeiro brasileiro começava a falar de sustentabilidade, e o microcrédito veio como um dos pilares da inclusão socioeconômica. “Eu me apaixonei por esse negócio que não só gera prosperidade como tem um impacto social efetivo”, disse Ramos. Após deixar o Santander, ele prosseguiu na atividade. Desde 2019 é um dos líderes da empresa Avante Microfinanças, que concede crédito a pequenos empreendedores nas regiões Norte e Nordeste. Em oito anos, a Avante já emprestou R$ 1 bilhão a cerca de 200 mil empreendedores de pequeno porte.

Os benefícios vão além do dinheiro. “Será preciso ressignificar a palavra ‘favelado’, porque se você considerar os 14 milhões de pessoas que moram em favelas, seu potencial de consumo chega a R$ 160 bilhões. Isso muda tudo”, disse a fundadora da Outdoor Social Inteligência, Emília Rabello. Ex-jornalista e publicitária, há oito anos ela começou a trabalhar com publicidade voltada para as comunidades. A escassez de dados a levou a criar a empresa para mapear esse universo. Os resultados surpreenderam. As favelas ficam em áreas irregulares, frequentemente ocupações. Muitos moradores estão lá pela falta de políticas públicas de moradia, não por serem de baixa renda. “Em alguns domicílios, a renda familiar é de R$ 5 mil por mês, equivalente ao piso da Classe C”, disse. “Tem mais pessoas na favela do que no Rio Grande do Sul, e isso não pode mais ser ignorado”, disse o fundador do DataFavela e do Instituto Locomotiva, Renato Meirelles.

As favelas são locais carentes e violentos, mas não são miseráveis. Em alguns domicílios, a renda familiar chega a R$ 5 mil por mês, o que coloca os moradores no piso da classe C e revela o potencial de consumo das comunidades.

O G10 Bank pretende ser um indutor do crédito na favela, sem concorrer com os bancos tradicionais. As estratégias de fomento são inspiradas nos modelos de microcrédito que renderam um Prêmio Nobel da Paz ao economista Muhammad Yunus, nascido em Bangladesh. “E o que foi criado em Paraisópolis pode ser replicado em qualquer favela, com um instrumento efetivo para que o pequeno empreendedor consiga acessar o crédito a um preço justo”, disse Ramos.

O campo é vasto. Há mais de 40 milhões de microempreendedores sem acesso ao sistema financeiro. Isso os obriga a buscar o crédito informal, nome educado para a prática da agiotagem. Uma das soluções pode ser o microcrédito, que começou timidamente há cerca de duas décadas e sempre esteve mais ligado ao campo das boas intenções do que à realidade do dia a dia. Ele só ganhou força devido à mão pesada do Banco Central (BC). Em 2005, a autoridade monetária determinou que os bancos destinassem 2% do recolhimento compulsório sobre os depósitos à vista para esses empréstimos. Foi um caso de missão dada, missão esquecida. Devido às dificuldades operacionais de conceder empréstimos e cobrar os devedores, os bancos preferem deixar o dinheiro dormindo sem remuneração nos livros do BC. “Há recursos que ficam lá parados, o que é um pecado”, disse Ramos. “O dinheiro existe, mas ninguém consegue distribuir.”

Uma das exceções foi o Santander. Por meio do programa Prospera Microfinanças, em 18 anos o banco concedeu cerca de R$ 10 bilhões nesses empréstimos, sendo R$ 2,5 bilhões só no ano passado durante a pandemia. O programa, que nasceu no Brasil e está presente em mais de 1,6 mil municípios, agora será exportado para outros países da América Latina. “Neste ano vamos expandir as fronteiras do programa” disse o superintendente executivo e responsável pelo Prospera, Aníbal Fernandes.

Mesmo com ações como a do Santander, a situação vem piorando desde 2014. A crise tornou os bancos ainda mais cautelosos, e a concessão desses empréstimos recuou a ponto de a carteira total passar a encolher em termos absolutos. Isso obrigou o BC a alterar as normas em setembro de 2020, tornando-as mais flexíveis. Graças a elas, o microcrédito cresceu 16,5% em 2020. No entanto, sua carteira total encerrou o ano passado em R$ 7,79 bilhões, menos de 0,8% dos financiamentos para as pessoas físicas. Ou seja, para cada R$ 100 emprestados aos brasileiros e brasileiras, apenas R$ 0,77 corresponderam ao microcrédito.

Para sanar essa deficiência, o G10 Bank empresta dinheiro com recursos captados de várias fontes. A mais importante delas são os investidores internacionais com uma visão social do capital, o que os faz aceitar uma remuneração abaixo da média. Os juros cobrados no microcrédito serão de, no máximo, 4% ao mês. O G10 pretende praticar taxas entre 2,8% e 3% ao mês. Com esse percentual, o banco espera não sufocar o empreendedor, sustentar suas operações e remunerar seus investidores. “Na primeira rodada captamos R$ 1,8 milhão de fundos internacionais e vamos fazer novas rodadas, com maior exposição do plano de negócios”, disse Ramos.

Como muitos dos clientes não conseguem ter conta em banco, seja por falta de endereço, seja por não conseguirem comprovar renda, os empréstimos serão concedidos com um sistema de garantias diferenciado, com várias etapas. “É preciso identificar o empreendedor, ver qual é a sua real necessidade de crédito, estabelecer o valor correto para não endividar demais a pessoa e ajudar na aplicação correta da sua atividade”, disse Ramos. Isso o torna um candidato ao posto de Muhammad Yunus brasileiro? “Quem me dera.”

EMPREENDEDORISMO MORRO ACIMA

A PEDALADA QUE CONECTA Givanildo Pereira, fundador da Brasil Favela Express, quer sanar as dificuldades logísticas e integrar os empreendedores de Paraisópolis, em São Paulo, à economia formal. (Crédito:Claudio Gatti )

Givanildo Pereira veio menino da Paraíba para Paraisópolis. Hoje, aos 20 anos, ele tem muitas histórias para contar sobre a precariedade da vida na favela. Mesmo assim, nunca desistiu de tentar mudar essa realidade. Aluno aplicado, ele se graduou no ano passado em Análise e Desenvolvimento de Sistemas de Informação com uma bolsa integral do Centro Universitário Ítalo Brasileiro. Durante a pandemia, presenciou a falta de ajuda do governo aos favelados e decidiu ajudar como podia, recebendo as mercadorias que as pessoas compravam pela Internet e não tinham como receber, devido aos problemas de logística. “Percebemos que nem os Correios entravam na favela e passamos a centralizar as entregas na entrada da comunidade e fazer a distribuição com funcionários/moradores que entregam de bicicleta”, disse. Estava criada a Brasil Favela Express, que deve se tornar uma das primeiras microempresas a receber um crédito do G10 Bank.

Sua motivação é melhorar a vida da comunidade, seguindo os passos de Gilson Rodrigues, que Pereira considera um mentor. Para isso, ele pleiteia o que pode ser o primeiro empréstimo concedido pelo G10 Bank, um financiamento de R$ 15 mil. Animado, Pereira quer ampliar o negócio, oferecendo, além de entregas, a locação de armários especiais, os chamados lockers inteligentes. Seu uso poderá reduzir ainda mais o gargalo logístico de Paraisópolis. Recorrendo a esses armários, o comprador pode determinar que o produto adquirido seja entregue neles. Um aplicativo gera um código que permite a retirada.

Após a expansão, a segunda etapa do projeto é empregar a Brasil Favela Express para começar a levar para fora mercadorias produzidas na favela, facilitando a integração com o mercado e a geração de renda da comunidade. Pereira considera-se otimista. “Só estamos esperando a confirmação do crédito para finalizar tudo.”

OS NÚMEROS DA COMUNIDADE

CADDAH | CBELLI

O desconhecimento da sociedade, dos bancos e das empresas sobre os moradores das favelas motivou Renato Meirelles a se dedicar a estudar essa população. Desde 2010, Meirelles criou o Data Popular, o Data Favela e o Instituto Locomotiva para mapear essa importante parcela dos brasileiros que, mesmo incluindo 14 milhões de pessoas, ainda é invisível para as políticas públicas e para o sistema financeiro. Isso tem levado os movimentos sociais a se organizarem para ajudar essa imensa população durante a pandemia. Essas iniciativas agora levaram à criação do G10 bank, o banco das favelas.

Ele não é o único. Ex-jornalista e publicitária, Emília Rabello sempre enfrentou dificuldades para que as empresas comprassem campanhas publicitárias populares, devido à falta de informações sobre esses consumidores. Há oito anos, ela montou a Outdoor Social Inteligência para levantar métricas que justificassem anúncios nas favelas. “Os bancos vêem essas pessoas como um risco e não oferecem produtos específicos para elas. Querem vender um carro para quem só precisa de uma bicicleta. Por isso, o microcrédito tem de ser desenhado para essas pessoas, sem renda e endereço comprovados, mas com dinheiro para consumir”, disse.

Segundo Meirelles, há dificuldades geográficas, porque a favela é território de ocupação, sem propriedade, e a falta de comprovação de renda e moradia impedem o acesso ao sistema bancário tradicional. “Cerca de 5,4 milhões de favelados tinham perfil para receber o auxílio emergencial durante a pandemia, mas não conseguiram nem se cadastrar. Ai o cadastro na favela ficou menor que o do asfalto”, afirmou Meirelles, acrescentando que por causa de todas essas dificuldades, as fintechs, que são mais flexíveis, estão conseguindo chegar mais próximo desse universo. “Sistemas como o do ‘merenda voucher’, criados em algumas cidades, foram viabilizados por elas. Somado ao sistema do auxílio emergencial da Caixa, ajudaram a incluir boa parte das pessoas desse universo”, disse Meirelles.

Claudio Gatti