No século 19, o filósofo e economista Karl Marx profetizou que o fim do capitalismo seria uma consequência inevitável da marcha da história. Assim como os servos haviam destronado a nobreza para criar o liberalismo, os operários derrubariam a burguesia para implantar o comunismo. Segundo Marx, um sistema regido pela ganância e não pela racionalidade estaria destinado a crises cíclicas cada vez mais intensas até a dissolução final. A história se encarregou de humilhar o bom velhinho. O comunismo e seu irmão siamês, o fascismo, resultaram em miséria e opressão quando saíram dos livros e foram aplicados no mundo real. Enquanto isso, o capitalismo liberal conseguiu se renovar e seguir em frente com a promessa de liberdade e prosperidade para todos, especialmente com a consolidação da democracia depois da Segunda Guerra Mundial, essencial para o regime de livre mercado.

No entanto, muita gente acredita que o capitalismo foi ferido de morte e vai entrar agonizando na terceira década do século 21. É que pela primeira vez desde a revolução industrial (1720-1840), a prosperidade não pode mais ser garantida. Seus filhos talvez sejam mais pobres do que você e certamente seus netos vão ter menos dinheiro ainda. A indiana Antara Haldar, professora de Direito na Universidade de Cambridge, dedica boa parte do seu tempo a pensar no futuro do sistema capitalista, especialmente em artigos para o jornal britânico The Indepent e para a prestigiosa revista americana The Atlantic.

Mecanização controlada: Antara Haldar acredita que só a extrema regulamentação da tecnologia disruptiva pode evitar o desemprego em massa, especialmente nos países em desenvolvimento

“Há o risco de que a concentração de renda aumente ainda mais no futuro, especialmente como resultado de novas tecnologias como a Inteligência artificial”, disse ela a DINHEIRO. “Isso também levará a uma maior concentração de riquezas no mundo desenvolvido, em detrimento dos países em desenvolvimento.” Haldar cita a inevitável mecanização da indústria, agricultura e transportes como uma das razões. “Pense em caminhões autônomos”, exemplifica.

Para ela, a única maneira de minimizar o problema é a extrema regulamentação de tecnologias com potencial disruptivo. Uma receita que, naturalmente, ninguém tem a menor intenção de seguir no capitalismo liberal. Além disso, a ideia ecoa a proposta do inglês Nedd Ludd, que tentou quebrar máquinas para frear a revolução industrial em 1810, no movimento hoje conhecido como “ludista”. Mas a regulamentação tecnológica defendida por ela também é advogada pelo intelectual israelense Yuaval Harari, autor dos best-sellers “Sapiens — Uma breve história da humanidade” e “Homo Deus”. “A tecnologia nunca é determinista, e o fato de que algo pode ser feito não significa que deva ser feito”, escreve ele no livro “21 lições para o século 21” (Companhia das Letras). “Os governos podem retardar o ritmo da automação para reduzir seu impacto e dar tempo para reajustes.”

Antara Haldar sintetiza a questão quando diz que “o futuro do capitalismo é o presente dos países em desenvolvimento”. E acrescenta: “Embora essas nações tenham excesso de desempregados, elas adotam tecnologias criadas para países com decréscimo populacional, provocando ainda mais desemprego. É importante lembrar que somos nós que controlamos a tecnologia e não o contrário”.

Inteligência artificial: o escritor Yuaval Harari defende que a pesquisa em IA seja controlada até que o sistema se reajuste

FETICHE Se, por um lado, o avanço tecnológico elimina postos de trabalho muito mais rápido do que consegue criar, por outro também mexe com uma das bases da economia de mercado, o chamado “fetiche da mercadoria”. Segundo Marx, o valor de um produto não está relacionado à quantidade de trabalho e material investido nele, mas sim às suas características imateriais. Parece complicado, mas é simples: existem bolsas e existem bolsas Louis Vuitton, que custam mais porque vêm acompanhadas de valores intangíveis como design, marca e status. Até hoje, o capitalismo funcionou assim, mas isso começa a ser questionado por gerações que cresceram na era digital e experimentaram a desmaterialização das mercadorias.

“À medida que nossa existência se torna mais virtual do que física, cai também nosso fetiche pela posse”, explica Eduardo Trevisan, gerente de Inovação no Instituto Ipsos de Inteligência de Mercado. “Mais importante do que ter discos é ouvir as músicas, mais do que possuir livros é dominar o conteúdo. Mas essa tendência também é influenciada pelo encarecimento do custo de vida e pela exaustão de recursos naturais”, afirma.

A desmaterialização do produto já obrigou vários setores a rever o modelo de negócios. A disrupção começou pela indústria da música, avançou para a mídia impressa e as locadoras de DVDs e fábricas de CDs. Agora, entra em setores que pareciam intocáveis, como o transporte urbano (veja o caso da Uber) e a hotelaria (Airbnb). Pesquisa recente do Ipsos, sob o relatório Observatório de Tendências, identifica o compartilhamento como um grande vetor no capitalismo do futuro.

“O crescimento de opções de consumo nas últimas décadas fez com que criássemos a sensação de que sempre haverá uma oferta ideal para cada indivíduo”, diz Eduardo Trevisan. “Mas em uma lógica de produção em massa, com ganho em escala, isso não funciona. No entanto, na medida em que o mercado consumidor amadurece, também amadurecem suas demandas e a personalização começa a ganhar espaço com a produção mais artesanal, como as cervejas, por exemplo, ou a publicação independente na Feira Plana e no Jardim Secreto, em São Paulo”, diz, citando dois eventos que vendem obras literárias, jornais e revistas fora do mercado formal.

Um dos efeitos positivos da “era digital” é a aproximação entre consumidor e produtor, que leva à busca por mercadorias mais “autorais” e cuja lucratividade sempre começa em patamares muito baixos, mas com potencial de crescimento exponencial. Hugo Bethlen, presidente do Capitalismo Consciente Brasil, movimento internacional que busca repensar a contribuição social das empresas, acredita que a “identidade digital” proporcionada pela Internet trouxe enormes benefícios para os mais pobres. “Como um pedreiro, uma faxineira, um encanador conseguiam trabalho? Por indicação de alguém. Hoje eles podem ser encontrados online. Isso elevou a dignidade desse trabalhador e o incluiu na economia formal”, diz ele.

Para Antara Haldar, a economia compartilhada já é a realidade dos países em desenvolvimento. “Na Índia ou no Brasil, isso existe faz muito tempo. Pessoas moram na mesma casa e dividem o aluguel, irmãos dirigem o mesmo táxi e compartilham custos etc. A China faz isso com as ‘TVEs’, que são pequenas empresas comunais”, diz ela. “As leis reconhecem que o direito à propriedade não pode ser absoluto. Por exemplo: eu sou dona da minha casa, mas o espaço aéreo acima dela pode ser usado por companhias aéreas. A ‘nova economia’ simplesmente torna mais óbvia a estrutura complexa do conceito de propriedade.”

Novo edén ou apocalipse: Alexandre Pellaes, da ExBoss (à esq.) acredita em empresas que se vejam como motores de transformação social. Antônio Brasiliano, da Interisk (à dir.), imagina um futuro dominado pelo caos, com crescimento exponencial da intolerância e também do terrorismo

Daniela Yoko Taminato, criadora do movimento InconforMAKERS, que reúne heads de inovação de diversas empresas para discutir soluções em áreas estratégicas da sociedade, concorda totalmente com essa ideia. “O eixo do capitalismo não é mais a posse, mas o acesso”, explica. “Isso muda tudo, mas não significa que o nível de riqueza vá necessariamente cair. O que vai acontecer é que o trabalho se deslocará do emprego, as pessoas vão assumir inúmeros papéis e ter diversas fontes de renda. São os ‘slashers’”, afimra. O termo foi criado pela americana Marci Alboher no livro “One Person, Multiple careers: the original guide to the slash” e descreve um tipo de profissional que não consegue ter uma resposta simples quando alguém pergunta “o que você faz para viver?”. O termo criado por Alboner esconde uma realidade econômica nada glamourosa. Como a base salarial vai diminuir, você vai ter que se virar nos 30 para manter a renda. Ninguém vai ser “slasher” por que gosta, mas por que precisa.

Ainda assim, Hugo Bethlen acha que isso pode ser o início da reinvenção do capitalismo: “É necessária uma elevação da consciência, principalmente entre os empresários, para que eles pensem qual o impacto que o seu negócio gera para a sociedade”, diz ele. “Os glóbulos vermelhos são importantes no corpo humano, mas a função do organismo não é criar glóbulos vermelhos. É a mesma coisa com o lucro. Ele é importante, mas o objetivo fundamental de uma empresa é oferecer soluções que impactem a vida de milhões de pessoas”.

MUVUCA O especialista em gestão estratégia Alexandre Pellaes, fundador da consultoria Exboss, e com passagens por multinacionais como Rhodia e Unilever, entre outras, cunhou um termo para esse novo mundo que se anuncia: M.U.V.U.C.A., acrescentando duas letras (“M” de “Meaningful” e “U” de “Universal”) ao já conhecido acrônimo V.U.C.A. (Volatile, Uncertain, Complex e Ambiguous). Nesta nova realidade, as empresas precisam aprender a surfar no tsunami que, de uma hora para outra, vai levar por água abaixo cadeias inteiras de produção. “A motivação do capitalismo será enxergar a organização como plataforma de transformação social”, diz ele. “As pessoas querem reverter os danos ambientais e também a proliferação da miséria. É um processo caórdico, mas que vai acontecer”.

Oportunidade: Hugo Bethlen, do Capitalismo Consciente Brasil, pensa que a tecnologia cria uma “consciência de empreendedor”, mas as pessoas precisam ser preparadas para aproveitar a oportunidade

“Caórdico”, outra expressão inventada por ele, define um momento socioeconômico em que é preciso aprender a conviver com o caos e, ao mesmo, tentar organizar os acontecimentos para que a empresa sobreviva e seja minimamente afetada.
Antônio Brasiliano, da consultora Brasiliano Interisk – Inteligência em Risco, adverte, contudo, que o futuro talvez traga muito mais caos do que ordem. “Com o gap educacional do terceiro mundo, o desemprego será maciço e isso vai provocar mais imigração, com as consequências que já conhecemos: mais intolerância, mais racismo e mais terrorismo”.

O escritor Yuval Harari também pensa que as revoluções do futuro talvez não sejam feitas por camadas produtivas da população, mas sim pelos “irrelevantes”, gente sem espaço ou status num mundo comandado por uma tecnocracia endinheirada e indiferente. Felizmente, a visão catastrofista e distópica de Brasiliano e Harari não é hegemônica.
“É impossível prever o grau de embate político futuro, mas sabemos que, quanto maior a crise e o desconforto, maior é a agressividade do debate”, diz Eduardo Trevisan, da Ipsos. “Entretanto, isso não se solidifica como tendência. O que conseguimos dizer é que as bolhas sociais consolidam nosso ponto de vista como o único correto ou o único existente. Mas, se olharmos para o mundo, a democracia continua forte.”

Daniela Yoko Taminato também mantém uma perspectiva otimista: “As pessoas ganharam mais poder de questionamento por causa das redes sociais. Por isso, cobram que as empresas sejam consistentes, coerentes e tenham valores claros. As companhias estão finalmente entendendo que felicidade dá lucro, que cuidar das pessoas é lucrativo.”

Ira contra máquina: Karl Marx previu um capitalismo de crises cíclicas até a completa dissolução. Mais pragmático, Nedd Ludd liderou a destruição de maquinários no século 19

Hugo Bethlen acrescenta: “O capitalismo consciente acredita que um negócio só bom se é ético, tem propósito e cria riqueza, não apenas para a empresa, mas para toda a sociedade”. Bethlen enxerga um futuro em que novas tecnologias como o blockchain e os contratos inteligentes possam integrar em escala global pequenos produtores e prestadores de serviços. Isso já é realidade no mundo digital, onde é possível contratar um webmaster indiano para construir um site e instalar um callcenter remoto no Paquistão. Mas ele prefere descrever o caso de uma plantadora de mandioca na África que vende sua produção para uma empresa de cerveja europeia, via uma cooperativa local, recebe em criptomoeda e, com isso, aumenta sua renda e qualidade de vida.

“A tecnologia pode levar todos nós a termos uma consciência de empreendedor”, diz ele. “Mas, para isso, precisamos dar uma formação para essas pessoas, que talvez não precisem ter perfil universitário, e sim técnico. E a iniciativa privada é quem precisa fazer isso, o governo só precisa parar de atrapalhar.” Alexandre Pellaes, da ExBoss, também vê a iniciativa privada como o grande motor dessa mudança. “A motivação do capitalismo será enxergar a organização como plataforma de transformação social”, diz ele. “As empresas são as estruturas mais fortes da nossa sociedade, seja pelo nível financeiro, seja pelo impacto social. Elas preenchem lacunas que o Estado não consegue suprir e precisam se preocupar com a questão ambiental e com a redução da miséria, por exemplo. Mas para isso elas precisam voltar à sua missão e questionar por que foram criadas.”

Antara Haldar lembra ainda que há diferentes tipos de capitalismo no mundo, e que é possível escolher entre eles ou mesmo inventar um modelo que seja completamente diferente do atual. “Um novo tipo de sociedade é possível e alcançável desde que exista engajamento social, imaginação acadêmica e vontade política. Afinal, fomos nós que inventamos o capitalismo e acabe a nós mudarmos as regras do sistema”, conclui.