Em um tempo no qual raros eram os automóveis que circulavam pelas ruas e estradas do País, a Ford mostrou audácia ao inaugurar uma fábrica na região central da capital paulista. O ano era 1919. Passado mais de um século de sua jornada brasileira, a empresa criada em Detroit, nos Estados Unidos, pelo visionário Henry Ford, enfrentou todo tipo de turbulência. Sobreviveu à alternância de regimes, de moedas e de planos econômicos. Nem mesmo a Segunda Guerra foi capaz de abalar as estruturas da companhia por aqui. O que parecia uma fortaleza da história industrial brasileira, porém, sucumbiu ao ataque conjunto de dois inimigos: a pandemia de Covid-19 e o custo Brasil. Segundo a empresa, a queda nas vendas se somou ao conjunto de dificuldades estruturais, burocráticas, trabalhistas e econômicas que atrapalham o desenvolvimento do País. Esse cenário tornou irrevogável a medida de encerrar a produção em território nacional. O anúncio foi feito na segunda-feira (11). O presidente e CEO mundial da Ford, Jim Farley, justificou o fechamento das fábricas como parte de uma estratégia para manter a empresa rentável globalmente. “Sabemos que são ações muito difíceis, mas necessárias, para a criação de um negócio saudável e sustentável”, afirmou.

Com a decisão, foram encerradas as atividades na planta em Camaçari, na Bahia, onde eram produzidos os modelos Ecosport e Ka, e na fábrica em Taubaté, interior de São Paulo, local de produção de motores e transmissão. A unidade paulista, no entanto, seguirá em funcionamento por alguns meses para produzir peças que garantam a disponibilidade dos estoques de pós-venda. As operações da Troller, em Horizonte (CE), serão mantidas até o fim do ano. O centro de desenvolvimento de produtos, na Bahia, continuará em operação, a exemplo do campo de provas, em Tatuí (SP), e da sede administrativa para a América do Sul, na capital paulista. A empresa garantiu que os clientes continuarão com assistência de manutenção e garantia.

Uma carta enviada recentemente aos concessionários dava a pista: “Desde a crise econômica de 2013, a Ford América do Sul acumulou perdas significativas”. A matriz, nos Estados Unidos, vinha auxiliando nas necessidades de caixa. O que deixou de ser mais sustentável. A Ford citou ainda a desvalorização das moedas na região (real e peso argentino, principalmente), o que “aumentou os custos industriais além de níveis recuperáveis”.

Com a reestruturação, mais de 5 mil empregos serão cortados na América do Sul, a maioria no Brasil, onde a Ford tem 6,1 mil funcionários. São 4 mil em Camaçari, 820 em Taubaté e outros 460 em Horizonte, além dos distribuídos entre campo de provas, administração e centro de desenvolvimento de produtos, que devem ser mantidos mesmo sem as fábricas.

PROTESTO Funcionários da Ford em Camaçari (BA), onde a montadora emprega 4 mil trabalhadores, reuniram-se para negociar benefícios após demissões. Empresas da China têm interesse na planta da empresa. (Crédito:Divulgação)

O posicionamento da empresa pegou os funcionários de surpresa. A maioria só teve ciência dos planos de fechamento das fábricas pouco antes da divulgação oficial. Mesmo assim, uma mobilização nacional pela manutenção dos empregos foi colocada em marcha. Houve assembleias e manifestações em Taubaté e Camaçari. Os salários médios na Ford variam de R$ 1,7 mil na planta cearense a R$ 5,8 mil, na paulista. Na Bahia, a média é R$ 3,9 mil. A empresa prevê um impacto de aproximadamente US$ 4,1 bilhões em despesas não recorrentes. Nesses custos estão incluídos gastos com rescisões e compensações, entre outros itens. A direção da Ford afirmou que irá colaborar com os sindicatos e parceiros no desenvolvimento de um plano justo e equilibrado para minimizar os efeitos do fechamento das fábricas.

QUINTA POSIÇÃO O mercado brasileiro tem potencial para fabricar 5 milhões de veículos por ano, mas está longe desse patamar. Em 2020, afetada pela pandemia, a produção ficou em 2 milhões. Quinta maior montadora do País, com 7,14% de participação, a Ford comercializou 119.454 automóveis no ano passado, além de 19.864 comerciais leves. Nos últimos anos, perdeu o quarto lugar para a sul-coreana Hyundai. O ranking é liderado pela General Motors, seguida por Volkswagen e Fiat. A situação atual da Ford, mais antiga montadora em atividade no País, traduz a realidade do mercado automotivo brasileiro. Em dezembro, a Mercedes-Benz anunciou o encerramento da produção em Iracemápolis (SP). A justificativa: a crise econômica no Brasil, agravada pela Covid-19. Em setembro, a Audi revelou que a fabricação do modelo A3 Sedan, no Paraná, seria paralisada, com previsão de interrupção por um ano. Segundo a marca que pertence ao Grupo Volkswagen, “boa parte da decisão passa pela definição do que irá ocorrer com os créditos do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) acumulados durante o programa Inovar-Auto e que não foram integralmente devolvidos”. Em 2019, a General Motors chegou a condicionar investimentos e a permanência no País à volta do lucro.

Há uma demanda geral do setor por mudanças estruturais. Em entrevista à DINHEIRO, o presidente da Nissan no Brasil, Marco Silva, defendeu a necessidade da reforma tributária. “Bastar ver o quanto há de imposto agregado no preço de um veículo”, disse. Na ponta do lápis, a tarifação varia entre 31% e 79%, no caso de alguns importados. O executivo também criticou as deficiências nacionais no processo de exportação, uma das principais estratégias das montadoras para compensar a desvalorização cambial de 40% do real em um ano. “Os problemas vão desde o aspecto burocrático, de papel, de taxa, ao tributário. É o que faz com que a indústria automobilística no Brasil não seja competitiva com vários mercados.”

Ao encerrar a produção no País, o presidente e CEO da Ford afirmou que a empresa está mudando para um modelo de negócio mais ágil e enxuto: “Vamos acelerar a disponibilidade dos benefícios trazidos pela conectividade, eletrificação e tecnologias autônomas”, disse Jim Farley. A empresa finalizará a comercialização dos modelos Ecosport, Ka e T4 quando terminarem os estoques e atenderá a região com o seu portfólio global de produtos importados, como a nova picape Ranger, a nova Transit, o Bronco, o Mustang Mach 1. O Brasil será atendido pelas operações da empresa na Argentina e no Uruguai. Presidente da Ford América do Sul, o executivo Lyle Watters disse que a companhia fez progressos significativos na transformação das operações na região, incluindo a descontinuidade de produtos não lucrativos e a saída do segmento de caminhõe. Em 2019, a empresa fechou a fábrica em São Bernardo do Campo (SP), com a demissão de 2 mil funcionários. Além disso, lançou os modelos Ranger Storm, Territory e Escape. Todos importados. “Esses esforços melhoraram os resultados nos últimos quatro trimestres, entretanto a continuidade do ambiente econômico desfavorável e a pressão adicional causada pela pandemia deixaram claro que era necessário muito mais para criar um futuro sustentável e lucrativo”, afirmou Watters.

Patrik Stollarz

“Vamos acelerar a disponibilidade dos benefícios trazidos pela conectividade, eletrificação e tecnologias autônomas” Jim Farley, Presidente e CEO da Ford.

Na terça-feira (12), os trabalhadores das unidades em Taubaté e em Camaçari promoveram um protesto em frente às plantas. Alessandro Silva, representante do Sindicato dos Metalúrgicos de Taubaté na Ford, disse que o impacto com a saída da montadora vai além dos 820 funcionários diretos. Segundo o sindicalista, são quase 600 empregos indiretos entre logística, limpeza e segurança. O número de pessoas afetadas pode chegar a 10 mil em todo o País. “As economias das três cidades (Taubaté, Camaçari e Horizonte) serão atingidas. Além disso, o impacto na saúde será grande, pois os funcionários tinham convênios médicos e, agora, passarão a usar o Sistema Único de Saúde (SUS), já sobrecarregado por causa da pandemia”, afirmou Silva. O sindicato pretende negociar os valores rescisórios. Segundo Silva, desde o início da pandemia os volumes de produção na unidade de Taubaté caíram de 40% a 45% sobre o esperado. Apesar disso, a entidade não imaginava o encerramento das atividades, “principalmente porque existia um acordo de estabilidade de emprego até o dia 31 de dezembro de 2021”, afirmou. A Ford, porém, pode antecipar a demissão mediante o pagamento dos salários. Na Bahia, o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Camaçari, Julio Bonfim, disse que a Ford demonstrou não ter interesse em prosseguir no Brasil. Em reunião com representantes da montadora teria sido revelado prejuízo de US$ 600 milhões na região em 2020 — um ano antes, teria sido de US$ 700 milhões. Segundo ele, além das demissões de funcionários da Ford, correm o risco de perder seus empregos cerca de 60 mil trabalhadores contratados por 30 empresas que fornecem produtos e serviços exclusivamente para a montadora.

Apesar da apreensão do sindicalista, os trabalhadores da Ford em Camaçari podem ter uma boa notícia em breve. Pelo menos quatro marcas chinesas estariam interessadas em assumir as instalações na Bahia: Great Wall Motors, Changan Auto, Geely (dona da sueca Volvo) e GAC. A planta está totalmente preparada para produzir carros de passeio. A Ford afirmou que facilitará “alternativas possíveis e razoáveis para partes interessadas adquirirem as instalações produtivas disponíveis.”

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“O ambiente econômico desfavorável e a pressão adicional causada pela pandemia deixaram claro que era necessário muito mais para criar um futuro sustentável e lucrativo” Lyle WatterS, persidente da Ford América do sul.

Para o especialista Marco De Mitri, sócio-diretor da AM2, consultoria especializada em soluções para tomada de decisões no varejo automotivo, a Ford deu início a uma estratégia de reestruturação há dois anos, quando encerrou a produção dos modelos Focus e Fiesta. Ele acredita que o fim da fabricação da Ecosport e do Ka faz parte desse plano. “A questão é que calhou de serem fabricações brasileiras, resultando no fechamento de plantas por aqui”, disse. “O mercado argentino oferece mais riscos, mas não entra em conflito com o plano estratégico da Ford.”

Depois de encerrar sua produção no País, a montadora terá de prestar esclarecimentos ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). A Ford tem dois contratos de empréstimo com a instituição, no valor de R$ 335 mihões, além de 30 contratos de financiamentos indiretos, fechados por meio de parceiros, que somam R$ 54,2 milhões. Os contratos de empréstimo, segundo o banco, foram assinados em 2014 e 2017, e tinham como finalidade projetos voltados ao desenvolvimento de novos produtos. Esses acordos já passaram da metade do prazo total, estão com o pagamento em dia e possuem cláusulas que prevêem a manutenção do emprego durante a implementação dos projetos. Em nota, o BNDES afirmou que aguarda as respostas da empresa para avaliar os impactos da decisão sobre os empréstimos ainda vigentes.

O presidente Jair Bolsonaro lamentou a perda de 5 mil empregos durante conversa com apoiadores, mas afirmou que “faltou a Ford dizer a verdade”. Na avaliação dele, a montadora queria subsídios para continuar a produzir veículos no País. “Vocês (brasileiros) querem que eu continue dando R$ 20 bilhões para eles (da indústria automotiva) como fizemos nos últimos anos. Perdeu a concorrência. Lamento.” A declaração foi rebatida pela Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), que representa as montadoras. Inicialmente, a entidade havia evitado comentar a posição da Ford, por se tratar de “uma decisão estratégica global de uma de nossas associadas”. Em entrevista à Globo, o presidente da Anfavea, Luiz Carlos Moraes afirmou que o setor não defende novos subsídios e que os incentivos tributários são uma maneira de corrigir distorções do sistema de imposto brasileiro. Segundo levantamento do jornal Folha de S.Paulo, as empresas do setor foram beneficiadas com R$ 69,1 bilhões da União, entre 2000 e 2021, em incentivos fiscais como, por exemplo, descontos em Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e Imposto sobre Importação. Moraes afirmou ainda que as montadoras buscam competitividade. A entidade defende a reforma tributária e tem alertado “sobre a ociosidade local, global e a falta de medidas que reduzam o custo Brasil”, com base em comparativos que indicam que o custo de produzir no Brasil é, por exemplo, 18% maior que no México.

AGONIZANDO O advogado tributarista Renato Aparecido Gomes, da Gomes, Almeida e Caldas Advocacia, em São Paulo, acredita que a reforma tributária tão sonhada pela indústria automobilística — e por outros setores da economia — vai demorar a sair por ser complexa e envolver diversas esferas de governo. As discussões sobre o tema seguem no Congresso, sem previsão de votação. Enquanto isso, ele defende a adoção de medidas paliativas que garantam a manutenção do trabalho realizado pelas montadoras. “É um setor que está agonizando. É como a pandemia do coronavírus: infelizmente, vamos ter alguns agonizantes que irão a óbito, caso da Ford. Agora, o que faremos para ajudar quem ainda está vivo?”, questionou Gomes. Ele, como o setor, defende um pacote de medidas de desoneração tributária que, “por incrível que pareça”, possam aumentar a arrecadação. Segundo o advogado, ao beneficiar um determinado segmento, toda a cadeia passa a gerar riquezas que, tributadas, compensam a desoneração. “O que precisa é um pouco de força de vontade. Não vai ser definitivo. Apenas uma solução para tirar o setor da UTI.”

O fim das operações brasileiras não foi o único fracasso da Ford no País. No fim dos anos 1920, a empresa adquiriu uma área de quase 15 mil m2 no Pará, em plena Amazônia, para produzir borracha. A intenção era fabricar pneus e, assim, não depender de fornecedores. Idealizada por Henry Ford, fundador da companhia, a Fordlândia era um complexo inspirados nas vilas de trabalhadores da região de Detroit, onde fica a sua sede. Foram construídos casas de madeira, alojamentos, galpões. Mas as diferenças de cultura entre os responsáveis pelo espaço e os trabalhadores e a falta de experiência em agricultura em áreas tropicais culminaram no fracasso do projeto. Em 1945, o governo brasileiro comprou as instalações.

Quando o assunto é linha de produção de automóveis, no entanto, a Ford correspondeu às expectativas e, em 102 anos de Brasil, produziu ícones que entraram para a história da indústria nacional, casos dos modelos Galaxie 500, Maverick, Corcel e, mais recentemente, Ranger e Ecosport. Resta saber agora se a ausência será sentida ou se a marca desaparecerá em meio ao avanço da indústria asiática pelo mundo e ao poderio das antigas concorrentes General Motors, Volkswagen e Fiat.