Foi a crônica de uma morte anunciada. Em uma assembleia na terça-feira (24), as 55 seguradoras que compartilham o controle da Seguradora Líder, única operadora do DPVAT, o seguro obrigatório que indeniza as vítimas de acidentes de trânsito, definiram pela dissolução da Líder. A seguradora vai oferecer o DPVAT, que é compulsório para quem licencia qualquer veículo automotor no Brasil, apenas até 31 de dezembro deste ano. Depois, a companhia vai se encarregar de pagar as indenizações já contratadas. Como as vítimas de acidentes têm até três anos para solicitar a indenização, a Líder tem a obrigação de prestar serviços até dezembro de 2023, mas só para quem contratar o DPVAT ainda este ano. No entanto, se não houver nenhuma decisão até lá, a partir da zero hora de 2021 o seguro obrigatório vai cair em um vácuo legal.

Criado em 1975, o DPVAT pode parecer mais uma das tantas jabuticabas brasileiras, mas não é o caso. Sua cobertura é uma das mais tradicionais do mercado segurador, a da responsabilidade civil. Explicando: o proprietário de um automóvel pode contratar um seguro patrimonial, que é uma proteção contra o roubo do veículo. O seguro de responsabilidade civil indeniza terceiros. Por exemplo, as vítimas de um atropelamento provocado pelo motorista. “Essa apólice é muito vendida fora do Brasil”, disse o presidente do Conselho de Administração da Líder, Leandro Alves. “Em alguns países, o motorista é proibido de tirar o carro que comprou da loja se não tiver uma apólice de responsabilidade civil.”

A idiossincrasia nacional é que, por aqui, esse seguro é universal e compulsório. Pode parecer até uma tributação, mas foi a solução encontrada para proteger os pedestres dos condutores de veículos que, por informalidade ou falta de renda, não têm apólices de seguro. “Temos cerca de 70 milhões de veículos transitando pelo Brasil, sejam carros, caminhões, ônibus e motocicletas”, disse Ismar Torres, presidente da Líder. “Apenas 18 milhões de veículos têm algum tipo de seguro além do DPVAT.” A abrangência garante uma cobertura ampla. Segundo a Líder, em 2019 foram pagas 353 mil indenizações, a maioria em acidentes provocados por motocicletas, que dificilmente têm seguro.

FRAUDES Devido à sua abrangência e às suas características, o DPVAT sempre foi sujeito a fraudes. Ele é o único seguro em que o indenizado não precisa comprovar que a culpa foi do segurado. Teoricamente, qualquer acidentado pode chegar a um hospital, contar uma história triste e solicitar sua indenização, atualmente fixa em R$ 13,5 mil. Não por acaso, em 2015 a Polícia Federal e o Ministério Público de Minas Gerais lançaram a operação Tempo de Despertar, que mirou uma quadrilha de policiais civis, médicos e servidores públicos que fraudavam o seguro por meio de laudos falsos. Ao lançarem a operação, há mais de cinco anos, os policiais federais estimavam uma fraude de R$ 28 milhões. Atualmente, a conta chega a R$ 1 bilhão. “E a Polícia Federal só lançou essa operação porque nós a alertamos”, disse Alves. “Percebemos as fraudes, mas somos uma seguradora, não temos poder de polícia.” Segundo o executivo, nos últimos anos a Líder tem dedicado muito tempo e esforço coletando dados e usando Inteligência Artificial e humana para coibir esses abusos. “Mas o DPVAT é um produto difícil de operar”, disse Alves.

COMBATE À FRAUDE Leandro Alves, presidente do Conselho da Líder, afirma que a seguradora desenvolveu processos para impedir desvios no DPVAT. (Crédito:Divulgação)

Isso explica por que, aos poucos, o DPVAT foi sendo mal visto pelas seguradoras. Ao ser lançada, em 2008, a Líder era um consórcio de 84 empresas. A assembleia que decidiu pela dissolução tinha representantes de apenas 55. As demais, especialmente as estrangeiras, ficaram pelo caminho. “A margem é pequena, o trabalho é grande e o risco de imagem é enorme”, resume um executivo de uma empresa internacional que optou, há tempos, por sair do consórcio. “Quando começaram a sair as primeiras notícias de fraude, o compliance da minha matriz me ligou e foi muito claro ao dizer que deveríamos deixar de operar o DPVAT”, disse ele.

A pá de cal foi uma investigação lançada pela Superintendência de Seguros Privados (Susep) em dezembro do ano passado, e que se encerrou no dia 17 de novembro. A Susep, autarquia federal que regula o setor, questionou R$ 2,25 bilhões em despesas realizadas pela Líder, que teriam de ser devolvidas ao caixa do DPVAT. Alves não concorda com a decisão. “A Susep utilizou critérios de gastos públicos para analisar despesas de uma empresa privada, o que é inconsistente”, disse. Segundo o executivo, a Líder possui R$ 7,5 bilhões em reservas técnicas. É o suficiente para pagar as indenizações previstas, e ainda sobram R$ 4,2 bilhões – uma quantia razoável em tempos de déficit nas contas públicas.

A Susep não concedeu entrevista. Executivos do setor dizem que a ideia da autarquia é procurar um ente público ou empresa estatal que tenha capilaridade e capacidade de gestão para assumir a administração desses recursos e o pagamento das indenizações. Qual ente público? Isso era, até o fechamento desta edição, um mistério. Em conversas reservadas, os executivos de bancos estatais dizem não ter interesse no produto, pelos mesmos motivos que afastaram os seguradores internacionais. Assim, a partir de janeiro de 2021, a solução para os pedestres brasileiros será, antes de sair de casa, elevar uma prece a São Cristóvão. Independentemente da crença, a solução será contar com a proteção do padroeiro dos motoristas.

353 MIL Foi o número de vítimas indenizadas pelo DPVAT em 2019