25/09/2020 - 10:31
Nas mais recentes atualizações ortográficas do dicionário político popular, algumas expressões ganharam notoriedade para justificar interpretações pouco convencionais da realidade: fatos alternativos, pós-verdade, mi-mi-mi, guerra de narrativas e, talvez o mais repetido de todos eles, “e o Lula?”. Na terça-feira (22), em discurso virtual na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), o presidente Jair Messias Bolsonaro (sem partido) expôs, em 14 minutos de leitura no teleprompter, uma série de fábulas que têm sido ditas à exaustão desde o início da pandemia, seguindo uma cartilha bem conhecida no campo da propaganda política. Uma mentira repetida mil vezes se torna verdade, afirma o ditado. Seguindo esse adágio, o presidente se mostra convicto de que basta distorcer a realidade seguidamente para converter em verossímil qualquer falsidade. Ao mundo, ele declarou que a culpa das queimadas é dos “índios e caboclos”, que pagou US$ 1 mil de auxílio emergencial e que é vítima de um complô que envolve “cristofobia”.
O uso de mentiras como estratégia tem sido uma constante desde a campanha de Bolsonaro. Para o cientista político Luis Felipe Miguel, professor da Universidade de Brasília (UnB), isso faz parte de uma tática política. “A mentira é a base da comunicação de Bolsonaro e de seu governo. Ele mente sobre seus propósitos, mente sobre suas ações e mente também sobre fatos de conhecimento público”, disse. “Quando não pode mentir, Bolsonaro omite. E quando é confrontado com aquilo que esconde, agride.”
Na esfera econômica, a declaração que mais chamou a atenção foi a de ter pagado US$ 1 mil em auxílio emergencial, para 65 milhões de brasileiros. O valor equivale a cerca de R$ 5,5 mil na cotação atual. No entanto, a média de todos os pagamentos não chega à metade disso. Mensalmente, o benefício foi de US$ 110 e está em US$ 55, depois do corte anunciado na semana passada. A cifra é muito inferior à linha de corte definida pelo Banco Mundial para classificar a pobreza, de US$ 165 por mês — ou US$ 5,50 por dia. Soma-se à falácia o fato de que a proposta do governo era de ajuda de R$ 200 por mês, valor elevado a R$ 600 pelo Congresso Nacional.
Na controversa política ambiental, o presidente construiu um enredo de ficção. Afirmou que índios e caboclos são responsáveis por incêndios na Amazônia e disse que as queimadas no Pantanal acontecem em decorrência das altas temperaturas na região e do acúmulo de massa orgânica em decomposição. Segundo Mariana Mota, coordenadora de Políticas Públicas do Greenpeace Brasil, essa fala já era esperada. “Ele desqualifica a ciência e busca culpabilizar terceiros em vez de assumir a responsabilidade constitucional que possui”, disse. “Quando o faz diante de centenas de líderes e investidores, o presidente piora ainda mais a imagem do Brasil.”
Sobre o combate à pandemia, Bolsonaro voltou a criticar a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que atribuiu a estados e municípios a palavra final sobre o enfrentamento da doença, e se disse vítima de um complô de governadores e da imprensa. Para Camila Asano, diretora de programas da Conectas Direitos Humanos, o presidente errou feio. “Ele fez um discurso desrespeitoso aos líderes mundiais em que subestima a inteligência e o nível de informação de seus pares sobre a crise no Brasil”, disse. Ainda que o dicionário político brasileiro tenha ganhado novos adjetivos nos últimos anos, o significado para uma palavra em português ainda não mudou: mentira é mentira.