Nas mais recentes atualizações ortográficas do dicionário político popular, algumas expressões ganharam notoriedade para justificar interpretações pouco convencionais da realidade: fatos alternativos, pós-verdade, mi-mi-mi, guerra de narrativas e, talvez o mais repetido de todos eles, “e o Lula?”. Na terça-feira (22), em discurso virtual na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), o presidente Jair Messias Bolsonaro (sem partido) expôs, em 14 minutos de leitura no teleprompter, uma série de fábulas que têm sido ditas à exaustão desde o início da pandemia, seguindo uma cartilha bem conhecida no campo da propaganda política. Uma mentira repetida mil vezes se torna verdade, afirma o ditado. Seguindo esse adágio, o presidente se mostra convicto de que basta distorcer a realidade seguidamente para converter em verossímil qualquer falsidade. Ao mundo, ele declarou que a culpa das queimadas é dos “índios e caboclos”, que pagou US$ 1 mil de auxílio emergencial e que é vítima de um complô que envolve “cristofobia”.

O uso de mentiras como estratégia tem sido uma constante desde a campanha de Bolsonaro. Para o cientista político Luis Felipe Miguel, professor da Universidade de Brasília (UnB), isso faz parte de uma tática política. “A mentira é a base da comunicação de Bolsonaro e de seu governo. Ele mente sobre seus propósitos, mente sobre suas ações e mente também sobre fatos de conhecimento público”, disse. “Quando não pode mentir, Bolsonaro omite. E quando é confrontado com aquilo que esconde, agride.”

PANTANAL EM CHAMAS Queimadas que assolam boa parte do bioma da região do Pantanal são minimizadas pelo presidente durante discurso de abertura da ONU. (Crédito:Ibere Perisse)

Na esfera econômica, a declaração que mais chamou a atenção foi a de ter pagado US$ 1 mil em auxílio emergencial, para 65 milhões de brasileiros. O valor equivale a cerca de R$ 5,5 mil na cotação atual. No entanto, a média de todos os pagamentos não chega à metade disso. Mensalmente, o benefício foi de US$ 110 e está em US$ 55, depois do corte anunciado na semana passada. A cifra é muito inferior à linha de corte definida pelo Banco Mundial para classificar a pobreza, de US$ 165 por mês — ou US$ 5,50 por dia. Soma-se à falácia o fato de que a proposta do governo era de ajuda de R$ 200 por mês, valor elevado a R$ 600 pelo Congresso Nacional.

Na controversa política ambiental, o presidente construiu um enredo de ficção. Afirmou que índios e caboclos são responsáveis por incêndios na Amazônia e disse que as queimadas no Pantanal acontecem em decorrência das altas temperaturas na região e do acúmulo de massa orgânica em decomposição. Segundo Mariana Mota, coordenadora de Políticas Públicas do Greenpeace Brasil, essa fala já era esperada. “Ele desqualifica a ciência e busca culpabilizar terceiros em vez de assumir a responsabilidade constitucional que possui”, disse. “Quando o faz diante de centenas de líderes e investidores, o presidente piora ainda mais a imagem do Brasil.”

ISOLAMENTO FORÇADO Crise econômica, segundo Bolsonaro, se dá pela política de prefeitos e governadores em incentivar que as pessoas fiquem em casa. (Crédito:André Rodrigues)

Sobre o combate à pandemia, Bolsonaro voltou a criticar a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que atribuiu a estados e municípios a palavra final sobre o enfrentamento da doença, e se disse vítima de um complô de governadores e da imprensa. Para Camila Asano, diretora de programas da Conectas Direitos Humanos, o presidente errou feio. “Ele fez um discurso desrespeitoso aos líderes mundiais em que subestima a inteligência e o nível de informação de seus pares sobre a crise no Brasil”, disse. Ainda que o dicionário político brasileiro tenha ganhado novos adjetivos nos últimos anos, o significado para uma palavra em português ainda não mudou: mentira é mentira.