Os efeitos da falta de chuvas no Brasil podem ser percebidos com clareza pelas empresas que dependem da Hidrovia Paraná-Tietê. Em maio de 2014, ano da crise hídrica que ameaçou deixar o Estado de São Paulo sem água para o consumo, o complexo de 1.740 quilômetros foi completamente fechado para priorizar a destinação dos rios a usos para consumo e geração de energia elétrica. Até janeiro de 2016, as cerca de 3 milhões de toneladas de produtos como soja e milho transportadas pela via fluvial tiveram de ser repassadas aos caminhões. Para as companhias envolvidas com a hidrovia, as perdas somaram R$ 1,5 bilhão na época, com quase 2 mil vagas fechadas, segundo estimativa da Federação Nacional das Empresas de Navegação Aquaviária (Fenavega). Restou a elas um temor constante de novos problemas, um medo que se expressa novamente neste ano diante de um sinal vermelho no nível dos reservatórios. “Uma falta de chuvas como a de 2018 deixa todos em estado de alerta”, afirma Raimundo Holanda, presidente da Fenavega.

O fluxo ainda não precisou ser interrompido na via, mas a redução da capacidade já voltou afetar as empresas. O calado, espaço ocupado pela navio dentro da água, caiu de 3 metros de profundidade no início do ano para 2,80 metros. O limite é de 2,70 metros. Em mercadorias, essa redução significa uma perda de 100 toneladas na capacidade de entrega de uma embarcação “É difícil trabalhar assim no limite”, afirma Luízio Rizzo Rocha, presidente do Sindicato dos Armadores de Navegação Fluvial de São Paulo. “Ficamos com medo.” No Estado, o principal símbolo do problema é o sistema Cantareira, que abastece a maior região metropolitana do País. Após mais de dois anos em níveis confortáveis, o reservatório registrou 39,70% do índice de armazenamento (confira o gráfico) e entrou em estado de alerta.

Déjà-vu: desde 29 de julho, a Sabesp já é obrigada a diminuir a retirada de água do Sistema Cantareira para suprir o abastecimento da Grande São Paulo. O volume de represas como as de Jacareí (ao alto) e Jaguari caiu após a pouca chuva do primeiro semestre (Crédito:Nilton Cardin / Parceiro / Agência O Globo)

O patamar ainda é distante dos observados no período agudo da crise, quando foi preciso acionar o chamado volume morto, uma reserva técnica emergencial usada no período. Ele também reflete as melhorias obtidas após projetos realizados para evitar uma repetição do quadro anterior. “Foram feitas obras para novos reservatórios e uma maior interligação entre represas”, afirma Samuel Barreto, especialista sobre gestão de uso da água da ONG The Natural Conservacy (TNC). “Isso torna a segurança hídrica em São Paulo mais garantida.” As obras incluem, por exemplo, o novo sistema de São Lourenço, inaugurado em abril, e suficiente para abastecer uma cidade como Curitiba. Outros projetos ainda estão parados, como na região da bacia dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (PCJ), o que acentua o problema localmente.

No entorno de cidades como Itu e Piracicaba, a região se vê mais uma vez refém do temor dos racionamentos. As duas cidades não registram chuvas de forma regular há mais de 100 dias. Trata-se de um teste para as medidas de contenção adotadas por empresários após na crise anterior. “Já em 2014, ao vermos que faltou água para tanta gente, percebemos que não poderíamos depender somente do abastecimento comum”, afirma Rosana Lucena, diretora da Lucenart, fabricante de tintas de Itu. Na época, a companhia temeu paralisar as suas atividades. Com dois novos tanques de armazenamento de água, com capacidade de 2 mil m3, há maior segurança para enfrentar o momento atual. “Isso é o que nos dá tranqüilidade.”

Empresas de grande porte também providenciaram mudanças desde a crise de 2014. Na época, a indústria química Rhodia, em Paulínia, teve de adotar um rodízio de quais linhas de produção seriam abastecidas. Desde então, a empresa passou a adotar sistemas de circuito fechado e de reuso de água em parte da fábrica. Da mesma forma, a Coca-Cola, que tem cinco fábricas no Estado, adotou medidas como a captação de água de chuva e reutilização dentro da indústria. No período, a redução no uso de água chegou a 34% na produção de bebidas.

A estiagem não se limita ao Estado de São Paulo. A represa de Furnas, no sul de Minas Gerais, registra menos de 30% de seu volume máximo, segundo a Agência Nacional das Águas (ANA). Empresas afetadas pelo período de seca e sem alternativas na região incluem principalmente as do agronegócio, vocação da região. A Cooxupé, cooperativa que representa produtores de café da região de Guaxupé, com faturamento de R$ 3,7 bilhões em 2017, analisa de perto os volumes pluviométricos. Em 2014, a seca reduziu em 19% a produção, um risco que voltou a ser considerado agora. “Para a atual safra, que já estava plantada, choveu o suficiente e o produtor não sofrerá impacto”, diz Éder Ribeiro, coordenador de geoprocessamento da entidade. “Mas a água que seria armazenada pelo subsolo é insuficiente. Se não chover mais a partir de agora, isso pode impactar a qualidade do café da próxima safra.”

Levando menos: ao ficar fechada por um ano e meio, a hidrovia Paraná-Tietê teve prejuízo de mais de R$ 1,5 bilhão. Em 2018, embarcações já são obrigadas a transportar menos para poder trafegar. Em sua fábrica de Paulínea (à dir.), a Rhodia passou a fazer a reutilização de água desde a crise de 2014 (Crédito:Chico Siqueira/Pagos)

As causas da estiagem envolvem uma série de fatores, desde deslocamentos de massas de ar aos efeitos globais do El Niño. As consequências variam em cada região. No Nordeste, historicamente castigado pela seca, houve falta de chuva. Já no Sudeste, segunda região mais afetada, o problema foi a frequência e a intensidade. O Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) reforça que ainda não é preciso alarde e que as chuvas do segundo semestre podem ser bem mais generosas. Mais importante do que isso, é a constatação de como os índices nos últimos cinco anos estão bem abaixo do previsto (veja gráfico abaixo).

Nas estimativas da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), as perdas podem superar o período da crise anterior se a estiagem se prolongar para além deste ano. “Mesmo que fiquemos com condições hídricas aceitáveis até dezembro, estamos em uma situação pior do que estávamos antes de 2014. Ou seja, ano que vem pode ser ainda mais prejudicial”, afirma o diretor-executivo da entidade, Luiz Cornacchioni. Só na cana-de-açúcar, a estimativa é de uma perda de 8% na produção. “Quando acontecem eventos traumáticos, os mais vulneráveis sempre são atingidos”, afirma Barreto da TNC. “Mas é somente uma questão de tempo até todos serem afetados.”