O olhar da aposentada Maria Aparecida Nunes de Souza, de 66 anos, era um misto de desânimo e preocupação. Cidinha, como é conhecida na vizinhança, observava os preços do arroz em um supermercado da zona Central de São Paulo, na segunda-feira (14), e fazia contas. Os filhos trabalham como motoristas para aplicativos de transporte e cabe a ela preparar o almoço dos três netos, o mais velho com dez anos. As crianças têm preferências alimentares bem definidas. “Eu tento oferecer macarrão, mas eles gostam mesmo é do meu arroz com feijão, e agora está caro demais”, disse a aposentada. Com um saco de 5 quilos custando cerca de R$ 45, a aposentada calculava se valeria a pena comprar um pacote grande ou levar uma embalagem menor, esperando os preços baixarem mais à frente. “Está difícil, sabe?”.

Cidinha tem razão para se queixar. Em agosto, os preços da maior parte dos itens da cesta básica dispararam. A combinação entre a alta do dólar, o avanço das exportações de commodities para a China e um leve aumento da demanda interna devido aos programas de assistência do governo vem pressionando a inflação com força. Esse fenômeno é mais perceptível nas gôndolas dos supermercados (observe o quadro ao lado), mas está espalhado pela economia como um todo. A inflação medida pelo Índice Geral de Preços 10 (IGP-10) acelerou para 4,34% em setembro, bastante acima dos 2,53% de agosto. Com esse resultado, o índice acumula alta de 13,98% no ano e de 17,03% em 12 meses. Em setembro de 2019, o índice havia caído 0,29% no mês e acumulava elevação de 3,65% em 12 meses, informou a Fundação Getulio Vargas (FGV).

Para piorar, as projeções do próprio governo são de que essa trajetória de alta continue. Na terça-feira (15), ao divulgar seus prognósticos, o Ministério da Economia informou esperar que o tradicional Índice Geral de Preços — Disponibilidade Interna, o IGP-DI da mesma Fundação Getulio Vargas (FGV), avance 13,02% neste ano. É quase o dobro dos 6,58% previstos anteriormente pelo governo.

Para complicar a vida da aposentada Cidinha — e de milhões de brasileiros de baixa renda —, a inflação subiu mais para os pobres. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em agosto a inflação foi de 3,2% para famílias com renda de até R$ 1.650. As famílias que ganham dez vezes mais perceberam um aumento de preços de 1,5%, menos da metade. É uma inflação injusta. Alimentos consomem uma fatia maior da renda total dos mais pobres.

A tendência de alta não passou despercebida em Brasília. No dia 4 de setembro, ao ser alertado pelos representantes dos supermercados que os preços estavam subindo mais do que o esperado, o presidente Jair Bolsonaro pediu “patriotismo” aos donos dos estabelecimentos de varejo. Bolsonaro disse que iria evitar “canetadas” para conter os preços. Imbatível na arte de dizer as palavras certas no momento mais adequado, na terça-feira (15), o ministro da Economia, Paulo Guedes, afirmou que a alta dos preços do arroz deve-se ao fato de “os pobres” (aqueles para quem a inflação subiu mais) terem gasto o auxílio mensal concedido pelo governo comprando mais comida.

SEM DESABASTECIMENTO Ao clamar pelo “patriotismo”, Bolsonaro evoca um momento da história em que Brasília tentava corrigir as derrapadas da política econômica apelando para medidas histriônicas e, não raro, populistas. Em fevereiro de 1986, o então presidente José Sarney tentou acabar com a inflação por meio do Plano Cruzado. As medidas foram heterodoxas: congelamento de preços e um forte aumento nominal dos salários. Como resultado, houve desabastecimento e ágio em diversos produtos, como a carne. Para tentar solucionar o problema sem ter de descongelar os preços antes das eleições daquele ano, o governo apelou para teatrais “confiscos” de bois no pasto e para os “fiscais do Sarney”, cidadãos comuns que, sem nenhuma atribuição para isso, tinham de “fiscalizar” se os supermercados estavam seguindo o congelamento de preços. Os resultados, é claro, foram nulos.

A alta de preços indica uma severa restrição na oferta, algo que deve continuar. “O preço das commodities cíclicas, como energia e metais-base, deve subir dada a nossa visão de que o crescimento econômico global vai acelerar significativamente para além da retomada neste terceiro trimestre”, disse o responsável pela análise de commodities do UBS Wealth Management em Hong Kong, Dominic Schnider. “Um retorno ao ritmo normal de crescimento deve ajudar também a demanda e os preços de produtos pecuários.” Na visão dele, haverá expansão de 9,2%, em termos anualizados, do PIB mundial no quarto trimestre ante o terceiro. Ele prevê que os índices mais amplos de commodities subam cerca de 15% nos próximos 12 meses.

INTIMIDAÇÃO Para Fernando Capez, presidente da Fundação Procon de São Paulo, o Ministério da Economia quer restringir a atuação das entidades de defesa do consumidor. (Crédito:Divulgação)

Vai faltar comida? Quem conhece o setor avalia que não, o que deveria representar um alerta contra as tentações de controlar os preços na marra. O CEO no Brasil da gigante de alimentos Cargill, Paulo Sousa, afirmou não acreditar na possibilidade de desabastecimento de produtos agrícolas, principalmente os ligados à cesta básica, como o arroz. Para ele, a inflação dos alimentos é inevitável dada a desvalorização do real. “Se o produto é negociado em dólar, esse aumento de preço vai acontecer com a queda da moeda local. Uma hora a conta chega. Segurar os preços no mercado interno pode desestimular o produtor”, afirmou. “Soluções heterodoxas, como congelamento de preços, não funcionam. A história mostra que isso não gera benefício”, afirmou o executivo durante uma live da DINHEIRO na segunda-feira (14).

A Cargill é uma das líderes no mercado de soja e milho no Brasil. Conhecedor do mercado, Sousa disse acreditar que o óleo de soja tem sofrido igualmente os efeitos da desvalorização da moeda brasileira. “Também é uma commodity global”, disse ele. “Não dá para festejar o sucesso do agronegócio e reclamar do valor do produto, são duas faces da mesma moeda.” Sousa disse entender que a decisão de zerar as tarifas de importação para o arroz foi correta, adotada no dia 9 de setembro. “É uma maneira que não atrapalha a produção e permite regularizar o abastecimento interno.”

Claudio Gatti

“Soluções heterodoxas, como congelamento de preços, não funcionam” Paulo Sousa, CEO da Cargill no Brasil.

MÃO VISÍVEL Variações exageradas e imprevistas de preços são fenômenos naturais de qualquer economia de mercado. Em circunstâncias normais, a entidade que o economista escocês Adam Smith chamou de “mão invisível” — também conhecida como lei da oferta e da procura — resolve o problema com o tempo. Os preços sobem, mais produtores entram no mercado, a oferta aumenta e os valores nas etiquetas retrocedem. “Em alguns momentos, porém, é preciso que a mão invisível do mercado seja substituída pela mão visível das autoridades. Não para controlar preços, mas para evitar abusos econômicos”, disse o presidente da Fundação Procon de São Paulo, Fernando Capez.

Nas últimas semanas, o dia-a-dia de Capez tem sido atribulado. Em circunstâncias normais, o Procon paulista fiscaliza dez empresas de varejo por semana. Em 14 e 15 de setembro, um mutirão da Fundação vistoriou as gôndolas de 117 estabelecimentos comerciais, em busca de abusos na remarcação dos preços. O presidente afirmou que ainda não tem os resultados da vistoria, mas disse que o Procon não será complacente. “A alta de preços tem uma explicação macroeconômica, mas o consumidor não tem nada com isso”, disse. Algo que, em sua avaliação, não está sendo bem visto em Brasília. “A área jurídica do Ministério da Economia tem dito que os Procons em todo do Brasil estão praticando crimes contra a ordem econômica ao fiscalizar o varejo”, afirmou. “Isso é não só um grave equívoco jurídico, como uma tentativa de intimidar os Procons”. Isso, com certeza, não ajuda a aposentada Cidinha a preparar o almoço dos netos sem preocupação.

Com reportagem de Paula Cristina e Sérgio Vieira