A sede da pequena editora turística Sylvain Harven fica numa encruzilhada da rua Saint-Vallier, ao pé do morro que abriga o centro histórico de Quebec. Sua proprietária, a jovem Bianca Drapeau, mostra orgulhosamente a brochura com a história da cidade, que acaba de fazer imprimir em seis idiomas, inclusive o português. ?Estamos vendendo bem por causa da Cúpula das Américas?, diz ela, feliz, num inglês carregado de sotaque francófono. Tudo estaria perfeito não fosse o fato de que é quase meio-dia e não há luz natural no interior do pequeno escritório de Bianca. As vitrines e janelas da editora foram totalmente cobertas com pranchas de madeira, ao custo de US$ 1.100. Motivo: a rua Saint-Vallier encontra-se perto do centro da cidade, mas está do lado de fora da cerca três metros de altura e quase quatro quilômetros de extensão erguida pela polícia canadense. O Muro, como tem sido chamado, foi planejado para impedir que os manifestantes chegassem perto dos 34 líderes presentes à Cúpula, que começou na sexta-feira 20 e estava prevista para se encerrar no domingo 22. Apesar da força policial de seis mil homens, era tida como quase certa a ocorrência de protestos e bagunça na porta de Bianca ? como houve na reunião da OMC em Seatle, em 1999, e em Washington no ano passado, durante o encontro do FMI. ?A Cúpula trouxe bons negócios, mas estou com um pouco de medo do que pode acontecer?, diz ela. Com pequenas adaptações, a situação da jovem editora se assemelha à de Fernando Henrique em Quebec.

Mesmo antes de chegar à cidade, na noite de quinta-feira 19 ? para um encontro oficial com o primeiro-ministro canadense, Jean Chrétien, amabilíssimo depois do vexame da vaca louca e de uma provável derrota na OMC na questão do Proex?, o presidente brasileiro já era o centro das atenções. Ele e George W. Bush, dos Estados Unidos, são os chefes de Estado mais importantes dessa reunião, como tem dito, repetidamente, a própria imprensa americana. Logo, há aqui uma enorme oportunidade para que o Brasil se firme como líder continental e obtenha pontos preciosos na defesa dos seus interesses econômicos. O lado ruim dessa história ? como os tapumes nas vitrines da editora ? é que o presidente está sendo pressionado a abrir mão daquilo que o torna especial aos olhos do mundo: a relutância em mergulhar de cabeça na formação da Área de Livre Comércio das Américas. A Alca pretende juntar num só mercado, a partir de 2005, 800 milhões de consumidores e um PIB conjugado de US$ 11 trilhões. O poder do Brasil no momento é o poder de dizer ?não, ainda? a essa idéia poderosa ? e Bush quer que FHC abra mão e se perfile com os demais países do Continente. Quase sem exceção, todos aceitam a Alca de forma incondicional. O Brasil, que tem a oitava economia industrial do planeta a proteger, resiste. Para o governo dos EUA, trata-se de garantir espaços, direitos e mercados paras as suas corporações. Para o Brasil, trata-se de defender empregos e garantir acesso mais amplo ao mercado americano, que impõe restrições a 60% dos produtos brasileiros exportáveis. É um tremendo impasse.

?A Alca tem de avançar em relação ao acordo de livre comércio que os EUA firmaram com o Canadá e o México?, avisou em Quebec, falando a DINHEIRO, o principal negociador comercial brasileiro, embaixador José Alfredo Graça Lima. No acordo do Nafta, que fez do México do presidente Vicente Fox uma espécie de zona franca sem a Mata Amazônica, não se discutiu, por exemplo, os subsídios que os americanos dão à sua agricultura, nem se falou em eliminar os mecanismos políticos que bloqueiam alguns dos produtos mais competitivos do Brasil ? como aço, laranja e açúcar ? em benefício dos produtores locais. Até agora, os diplomatas dos EUA estão se negando a colocar esses dois temas claramente no cardápio da Alca ? cujo rascunho tem nove capítulos, com nada menos que 1.200 páginas recheadas de desacordos e declarações provisórias a cada meia dúzia de linhas. Se a Alca fosse firmada nos termos de hoje, discutindo apenas tarifas, o Brasil estaria fazendo, na prática, uma nova abertura unilateral de mercado, com conseqüências não calculadas para a indústria e o setor de serviços. Mas Graça Lima tem esperança. ?A negociação é longa e temos de dar a eles o benefício da dúvida?, diz o embaixador. ?Talvez o governo republicano consiga do Congresso uma licença de negociação mais flexível do que um governo democrata obteria.? Isso pode significar que a administração Bush talvez contorne outro tabu: as cláusulas ambientais e trabalhistas. A última é uma exigência formal dos sindicatos americanos e a primeira uma demanda clássica dos ecologistas no mundo inteiro, mas o governo brasileiro, assim como as demais economias emergentes, as vê como protecionismo disfarçado e jura que não irá aceitá-las.

?Não entendo essa recusa. Se as corporações internacionais adotarem padrões rígidos de qualidade de trabalho e preservação do ambiente, todos sairemos ganhando?, disse a DINHEIRO o jovem ecologista canadense Hassan Kapasi, participante da Cúpula dos Povos das Américas. Esse evento ingênuo, alternativo à reunião governamental, atraiu milhares de ativistas antiglobalização e produziu, além de marchas e debates, uma surpresa: uma ONG americana divulgou, na tarde de quarta-feira 18, uma cópia do capítulo do texto da Alca que trata dos direitos dos investidores. Embora fosse apenas um rascunho de 32 páginas, com propostas contraditórias em várias direções, o espírito do documento era tão liberal que assustou até mesmo os calejados canadenses, cujo governo vive sendo processado por corporações americanas desde que firmou o tratado do Nafta, em 1994. ?Tinham nos prometido que jamais assinariam outro documento nos mesmos termos, e agora nos vêm com isso?, irritou-se Maude Barlow, presidente da ONG Conselho dos Canadenses. O embaixador Graça Lima garantiu em Quebec que ?os excessos? desse rascunho não vão sobreviver ao processo de negociação. Quem também ameaça sucumbir aos quatro anos de debate antes da criação da Alca é o seu primo mais velho, o Mercosul. Na quinta-feira, depois de outra saraivada de declarações antibloco do ministro argentino Domingo Cavallo ? desta vez no Brasil ?, os homens do Itamaraty, liderados pelo ministro Celso Lafer, das Relações Exteriores, foram obrigados a explicar, em Quebec, que ainda existe uma posição comum do Mercosul, e que ela se manifesta nas atitudes dos diplomatas portenhos, ainda que não transpareça nas palavras do superministro. O açodamento antibrasileiro de Cavallo tem se manifestado também na forma de acenos para os EUA. O ministro já avisou que, com ou sem Mercosul, a Argentina está à disposição dos Estados Unidos para discutir um tratado bilateral de livre comércio. Sua mente conspiratória deve estar enxergando no impasse Brasil-EUA uma oportunidade de fazer um gol de mão para a Argentina. No Brasil, o desconforto com essas estocadas é tão grande que já bateu à porta do Palácio do Planalto.

O presidente Fernando Henrique, falando ao jornal Valor Econômico, edição da quinta-feira 19, disse que iria cobrar explicações sobre Cavallo de seu chefe, Fernando De La Rúa, durante um café da manhã marcado para Quebec. ?Vou perguntar ao presidente qual é a opinião que prevalece na Argentina, se é a dele ou a do ministro Cavallo?, prometeu FHC. Tendo anunciado seu desgosto publicamente, o presidente nem precisaria repeti-lo no encontro pessoal com seu colega. Afinal, o recado já estava dado: amarre seu Cavallo ou vou abrir minha porteira. Não faltam no primeiro escalão do governo brasileiro ministros como Alcides Tápias, do Desenvolvimento, e José Serra, da Saúde, com temperamento e treino para endurecer o jogo com o vizinho. Basta uma ordem do presidente.

De qualquer forma, vem em mau momento para o Brasil essa nova rusga com a Argentina. O governo americano, por meio de seu negociador mais graduado ? Robert Zoellick, chefe do United States Trade Representative ?, começou a avisar, mesmo antes de Quebec, que não aceitará um não como resposta na questão da Alca. E como a área de livre comércio não pode ser criada sem que todos os 34 participantes concordem, a forma que os EUA encontraram de pressionar o Brasil, líder do Mercosul, é negociando acordos bilaterais de livre comércio com os demais países do Continente. Já começou a fazer isto com o Chile e está deixando no ar a possibilidade de estender a graça a outras nações, isolando comercialmente o Brasil. O poder de persuasão dos americanos tem de ser entendido dentro de um cenário hipotético: imagine-se a situação da economia brasileira de US$ 600 bilhões se ela fosse a única do Continente sem acesso preferencial aos mercados norte-americanos dos EUA, México e Canadá, cujas economias têm, juntas, um PIB de quase US$ 9 trilhões. É basicamente impensável, e os diplomatas brasileiros negociam sabendo disso. Eles e Fernando Henrique.