Dona das marcas Peugeot, Citroën e DS, a francesa PSA guarda uma relação curiosa com o Brasil. Em 1891, um modelo Peugeot foi o primeiro automóvel a desembarcar no País. O carro chegou ao Porto de Santos, a pedido de Santos Dumont, que anos mais tarde entraria para os nossos livros escolares como o “Pai da Aviação”. Apesar desse laço, o grupo nunca conseguiu decolar como gostaria por aqui. O histórico de seguidos prejuízos também marcou a trajetória da montadora na América Latina. Esse percurso acidentado ganhou contornos ainda mais críticos em 2012, quando a empresa esteve perto da falência.

A partir de uma ampla reestruturação, saiu de uma perda global de € 4,1 bilhões para um lucro líquido de € 2,1 bilhões, em 2016. Embora o grupo não revele dados consolidados, a região seguiu essa toada, ao apresentar resultado positivo, pela primeira vez, em 2015, um desempenho que se repetiu no ano passado. O desafio agora é replicar esse cenário no Brasil. Na contramão dos dois anos seguidos de lucro na América Latina, a PSA segue deficitária no Brasil, mostrando que a fórmula adotada lá fora ainda não está funcionando por aqui. Se nos tempos de recordes da indústria automotiva no País a PSA não conseguiu ganhar presença local, a situação se deteriorou diante de um mercado que despencou quase 50%, entre 2012 e 2016.

Nesse intervalo, a participação somada das marcas do grupo, que já era incipiente, caiu de 4,03% para 2,53%. “Não podíamos ficar esperando o gigante adormecido. Tínhamos que atacar outros mercados na região”, diz o português Carlos Gomes, 55 anos, presidente da PSA no Brasil e na América Latina, e membro do comitê executivo do grupo francês. À frente da operação desde 2010, ele reconhece, no entanto, que a crise econômica e o colapso do setor não foram as únicas justificativas para a subsidiária não acompanhar o resultado da região. “Não estamos aqui para dar desculpas. Nós também cometemos erros no passado.”

Mesmo nesse contexto, a PSA não ficou de braços cruzados no Brasil. Assim como acontece nos demais mercados da América Latina, o País tem sido alvo de uma série de esforços implantada a partir da chegada, em 2013, do CEO global Carlos Tavares. A última delas, reunida sob o plano “Push to Pass”, como é conhecido o botão usado, legalmente, por pilotos de automobilismo como um “combustível” extra para ultrapassar seus rivais. Como parte de um ciclo de investimentos de R$ 3,7 bilhões, aplicado no Brasil entre 2010 e 2015, a ampliação da produtividade na fábrica instalada em Porto Real (RJ) foi um dos focos. Desde então, a unidade cresceu em exportações, especialmente para a Argentina.

Em 2016, 50% dos 82,3 mil carros produzidos na fábrica tiveram como destino o exterior, incluindo novos mercados, como Madagascar e Costa do Marfim. A vertente foi uma das responsáveis pelo aumento de 24% da produção no ano. A prioridade, porém, foi a rentabilidade e a eliminação de despesas consideradas supérfluas. A montadora transferiu sua sede, no Rio de Janeiro, da Praia de Botafogo para a região central. Em São Paulo, três unidades foram consolidadas em um único prédio, na zona sul da cidade. Com essas e outras medidas, a PSA reduziu seu custo fixo na região em 60%, para € 400 milhões. Os ajustes também envolveram a saída de linha de modelos como o Peugeot 207 e o Citroën C4 Hatch, além da busca por melhores margens.

Alternativa: o Citroën Aircross é um dos modelos produzidos na fábrica de Porto Real (RJ), que vem se destacando como um polo de exportação do grupo (Crédito:Divulgação)

“Não hesitamos em perder volume”, diz Gomes. “Se você cai na facilidade de vender muito, e mal, há um grande risco de destruir a sua marca.” Uma das razões apontadas para o histórico de insucessos da PSA no Brasil é justamente a escolha, no passado, por priorizar o volume de vendas. Além de possuir menos recursos que gigantes como a Volkswagen e a General Motors, o grupo enfrentou outros contratempos. “A PSA não tinha estrutura de pós-venda para acompanhar essa estratégia”, afirma Rodrigo Custódio, analista da Roland Berger, referindo-se a questões que ficaram associadas às marcas da companhia, como os problemas na rede de assistência técnica, o alto custo das peças e a grande desvalorização dos modelos no momento da revenda.

“Hoje, os carros da PSA são bons e bem equipados para o padrão brasileiro”, diz uma fonte do setor, que pediu anonimato. “Mas as marcas do grupo têm uma imagem arranhada.” A estratégia para atacar essas deficiências está em curso. Lançada em julho, a iniciativa mais recente é o Peugeot Total Care, que oferece benefícios como revisão gratuita, caso o carro não seja entregue em até 24 horas. Outro projeto no forno, e que já possui um programa similar na Peugeot, envolve a Citroën. Entre outros recursos, o programa garante a recompra de modelos da marca por 85% do valor da tabela FIPE. O Brasil também foi a primeira operação da América do Sul a receber, no fim de 2016, uma unidade da Euro Repar Car Service, rede de oficinas multimarcas do grupo.

“A ideia é oferecer peças e serviços a custos mais competitivos para os clientes cujos carros não estão mais na garantia”, diz Rodrigo Custódio, da Roland Berger, que enxerga boas perspectivas na investida. “O mercado de reposição é perene e ainda tem muito espaço a ser explorado no Brasil.” A renovação do portfólio é mais uma ferramenta. Com 16 lançamentos programados nos países do Mercosul até 2021, uma das principais apostas são os utilitários. Nesse segmento, até o fim do ano chegam ao Brasil os furgões Expert, da Peugeot, e Jumpy, da Citroën. Na região, a meta na categoria é saltar das 30 mil unidades vendidas, em 2015, para 60 mil, em 2021. A compra da Opel/Vauxhall, operação da GM na Alemanha, é outro trunfo.

O acordo, concluído na quarta-feira 2, por € 2,2 bilhões, torna a PSA o segundo maior grupo automotivo da Europa. Apesar do desafio de recuperar a operação em questão, deficitária há 16 anos, a expectativa é ampliar o poder de barganha com fornecedores e, consequentemente, suas margens, que hoje estão na casa de 7,3%. “E nosso portfólio ficará mais rico, com a opção de trabalhar também as marcas alemãs em países nos quais as marcas francesas não são tão bem vistas”, diz Gomes. Apesar dos indícios recentes de um início de retomada, o executivo não enxerga uma recuperação tão rápida da indústria automotiva no País. Para a PSA, uma das metas é alcançar uma participação no mercado local de 5% em 2021.

Gomes estima que a operação local saia, enfim, do vermelho na virada de 2018 para 2019. Nessa rota, ele conta com o voto de confiança da matriz francesa. “Quando eu cheguei ao grupo, não tinha voz no comitê executivo. Tive que mudar o jogo na América Latina para ser ouvido”, afirma. Ele faz questão de frisar que o trabalho realizado até o momento teve a participação essencial de Ana Theresa Borsari, CEO da Peugeot no Brasil, Paulo Solti, CEO local da Citroën, e de seus respectivos times. “Ainda não temos o tamanho que gostaríamos no Brasil. Mas já construímos todo o caminho para chegar lá.”