Uma das cenas mais impressionantes – talvez a mais marcante delas – daquele trágico desabamento do antigo prédio da Polícia Federal, no Largo do Paissandu, em São Paulo, ainda é o da tentativa de resgate do morador identificado como Ricardo. Sob as lentes das câmeras, ao vivo, o trabalhador, que há mais de cinco anos carregava e descarregava caminhões do centro da cidade, foi engolido pelos escombros incandescentes nas primeiras horas do feriado que celebra o Dia do Trabalho, em 1º de maio. Apesar da imediata estupidez dos pré-julgamentos nas redes sociais, que o rotulava como “invasor”, “morador de rua” e “vagabundo”, entre outros adjetivos impublicáveis, Ricardo teria morrido por decidir voltar ao prédio em chamas e tentar salvar quem encontrasse pelo caminho. Mas o pesadelo assistido no Edifício Wilton Paes de Almeida vai além. Por trás do enredo de filme de terror está o drama da pobreza e do déficit habitacional nas grandes cidades, resultado do colapso das políticas públicas das últimas décadas.

O problema é maior e mais grave do que se imagina. Ninguém morava naquele edifício, com ratos, baratas e em condições precárias, por opção. E existe muita gente nessa situação. Pelos cálculos da Secretaria Municipal da Habitação de São Paulo, há quase 1,2 milhão de pessoas vivendo em situação precária na maior metrópole brasileira. Em número de moradias, isso representa a necessidade de criação de 358 mil novos endereços – seja por meio da construção de novos imóveis ou pela adaptação de edifícios já existentes. Em todo o País, o déficit é de 7,76 milhões de moradias, segundo o último cálculo da FGV, em 2015. Nesse quesito, todas as grandes políticas públicas voltadas a reduzir o déficit habitacional ruíram, especialmente as cooperativas habitacionais, como Cohab e Inocoop, que foram acusadas de servir como instrumento de corrupção para governos tucanos, e o Minha Casa Minha Vida, idealizado pelos governos do PT. Este último, inclusive, foi apontado por especialistas por agravar o problema.

Um estudo realizado por pesquisadores da Universidade Católica de Brasília, finalizado no ano passado, concluiu que o estímulo ao setor através de subsídios inflacionou o mercado da construção – acima dos valores do subsídio – e empurrou mais de 1,4 milhão de famílias para o aluguel e às favelas. De 2008 a 2014, segundo o estudo, o valor médio dos imóveis financiados no Brasil subiu 121,6%. Para agravar o cenário, o maior detentor de imóveis do País é a União. Um levantamento feito em outubro do ano passado pelo Ministério do Planejamento mostrou que o governo possui 483 imóveis desativados no Estado de São Paulo. Se fossem leiloados, poderiam render mais de R$ 16 bilhões aos cofres públicos.

Esses imóveis abandonados, inclusive, podem ser parte da solução. Um exemplo a ser copiado é o de Nova York, onde existem 77 mil pessoas vivendo nas ruas. Como a lei local obriga a prefeitura a fornecer um abrigo para todos os sem-teto, há duas décadas todos os imóveis públicos ou desativados são, gradualmente, convertidos em novos lares. No ano passado, foram investidos US$ 196 milhões em reforma e adaptação de imóveis, algo que poderia ser replicado por aqui. Esse dinheiro, inclusive, não é apenas dinheiro público. Quase 150 empresas locais são cadastradas para fornecer materiais ou mão de obra para o programa de moradias. Em troca, recebem redução de impostos e de taxas municipais. Com isso, todos ganham: as empresas, as famílias mais pobres e a gestão pública.