Vencedor do Prêmio Nobel de Economia em 2013, o americano Robert Shiller previu no livro Exuberância Irracional (lançado em 2000 e reeditado em 2005) o estouro das bolhas da Nasdaq e do mercado de imóveis nos EUA. No ano passado, em outro livro, Narrative Economics (ainda sem edição no Brasil), ele expandiu suas ideias sobre precificação de ativos. Segundo a teoria de Schiller, a narrativa mais atraente é a que viraliza — a ponto de determinar o comportamento de manada de um mercado de capitais. Pois o momento atual das bolsas globais, após terem sido fortemente impactadas pela irrupção da pandemia da Covid-19, poderia ser interpretado com a fusão dos dois títulos do autor: narrativa irracional.

Enquanto as projeções sobre a economia real indicam desemprego em massa, perda de renda, falência de empresas e dívidas governamentais em alta, a evolução recente das principais bolsas do mundo descreve o oposto. O mercado financeiro adotou a narrativa – aparentemente irracional – de que existe uma possibilidade grande de recuperação do valor dos ativos, a despeito dos números do presente. Se Schiller estiver certo, ela irá vingar.

Isso aconteceria devido ao excesso de liquidez causado pelos trilionários pacotes de ajuda criados por banco centrais pelo mundo, e também porque uma retomada das principais economias é provável, passada a primeira onda de contágios do novo coronavírus. “Estamos assistindo a uma queda de braços entre duas forças”, diz Affonso Celso Pastore, economista e ex-presidente do Banco Central. “De um lado, os bancos centrais estão expandindo fortemente as suas medidas de auxílio às economias. A outra força são os fundamentos da economia. A euforia que vemos é que, no curto prazo, quem ganha é a liquidez.”

BULL MARKET O índice S&P 500, da bolsa de Nova York, já acumula alta de 45% em relação ao seu ponto mais baixo no ano, e chegou a zerar as perdas de 2020. (Crédito: Reuters/Brendan Mcdermid )

Após uma sequência de perdas históricas nas ações de todo o mundo entre o final de fevereiro e últimos dias de março, seguiu-se uma forte recuperação, puxada pelas bolsas dos EUA. O índice S&P 500, da bolsa de Nova York, já acumula alta de 45% em relação ao seu ponto mais baixo no ano, e chegou a zerar as perdas de 2020. Já o índice Nasdaq, beneficiado por sua exposição às empresas de tecnologia, superou de forma inédita, na primeira semana de junho, a marca dos 10 mil pontos (em 20 de março, estava em 6,8 mil). O mundo saiu de um cenário de pânico de mercados para um inesperado bull market — termo criado em Wall Street para descrever a valorização extraordinária de papéis na bolsa.

No Brasil, o ciclo de baixa durou mais tempo devido à crise política causada por Jair Bolsonaro desde o início da pandemia. Ao forçar a saída de dois de seus principais ministros, o presidente agravou ainda mais a queda da bolsa. A recuperação do Ibovespa só passou a acompanhar os movimentos internacionais no fim de abril. Mesmo com um atraso de um mês, o índice das ações negociadas na B3 já contabiliza uma alta de 50% em relação ao fundo do poço.

CURVA EM V Após a crise financeira de 2008, o Ibovespa levou 2.307 dias para recuperar o seu valor nominal máximo anterior. Ao que parece, desta vez, a queda foi mais rápida, mas a retomada também vem ocorrendo de forma muito mais ágil. Se, por conta das interrupções de consumo e de produção, a possibilidade de recuperação em formato de V é tida como improvável para a economia, ela se tornou realidade nas bolsas. Para Thiago Pereira, economista-chefe da Macro Capital, o primeiro momento do rali tinha relação com os anúncios de ajuda dos banco centrais. Jerome Powell, presidente do Federal Reserve, já conseguiu a aprovação de US$ 3 trilhões em pacotes de estímulos junto ao Congresso americano e ainda quer mais. “A segunda euforia vem da expectativa de normalização com a reabertura das economias”, diz Pereira. “O mercado imaginava dados bons aparecendo na virada do segundo para o terceiro trimestre do ano, mas já estamos vendo algo ocorrido em maio. Ainda é um tanto imaturo, mas podemos ter uma confirmação do otimismo com uma nova onda de dados.”

“A poupança doméstica está sendo empurrada para a bolsa, mesmo com o brasileiro tendo sido por muito tempo avesso a risco, quando contava com juros altíssimos” Fabio Akira, economista-chefe da gestora BlueLine Asset

O número que mais animou os mercados internacionais foi uma queda da taxa de desempregados nos EUA: de 14,7%, em abril, para 13,3%, em maio. Os economistas esperavam um aumento para próximo da faixa dos 20% antes de começar a melhorar. No entanto, os números, apesar de surpreendentes, estão longe de serem bons. O total de empregos perdidos desde fevereiro ainda soma 19,6 milhões. A taxa é a maior desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Outro número positivo foi divulgado na terça-feira (16). O Departamento de Comércio americano anunciou uma alta de 17,7% de vendas no varejo, após dois meses de perdas recorde. “Estamos otimistas com o desempenho para o segundo semestre”, diz Pereira.

Na esteira desses resultados surpreendentes, o mercado brasileiro entrou no clima de euforia. Mas, por aqui, as incertezas são ainda maiores. A economia real promete meses, ou até anos, de sofrimento. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico estima que, em 2021, o brasileiro será de 5% a 8% mais pobre do que no ano passado. Para conseguir captar as dificuldades de pessoas desempregadas procurarem ocupação durante a pandemia, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou uma pesquisa nova, a Pnad Covid-19. Ela captou que existe um universo de 28,5 milhões brasileiros desempregados ou que gostariam de trabalhar mas que não procuraram ocupação por conta da pandemia. Haveria ainda outros 14,6 milhões de pessoas temporariamente afastadas do trabalho (caso de atendentes de lojas que estavam fechadas), o que indica falta de atividade econômica.

Frente a esse cenário, há a expectativa de impactos bastante fortes nas empresas. Em especial, nas de menor porte e com menos capacidade de caixa para resistir a diversos meses com faturamento prejudicado. A necessidade de crédito para elas sobreviverem pode ser percebida junto aos grandes bancos. Segundo o diretor-executivo do banco de varejo do Itaú Unibanco André Rodrigues, os prazos de carência para pagamento de dívidas de pessoas físicas foram estendidos de dois ou três meses para até 120 dias. Para pessoas jurídicas, 180 dias. “Já esperávamos que as pessoas precisariam de mais prazo para pagar”, afirma Rodrigues. “Elas precisam também ter capacidade de pagamento, porque vão enfrentar dificuldades de caixa. Então, além de estender o tempo de carência, estipulamos juros reduzidos.” Em dois meses do programa Travessia, que oferece crédito menos custoso para até 20 milhões de correntistas, o banco já atingiu 1,8 milhões de pessoas e 158 mil empresas, com R$ 53,2 bilhões em alongamentos de dívidas e dinheiro novo. “Precisamos emprestar a quem precisa. Crédito na dose certa é remédio. Em excesso, é veneno, e causa endividamento.”

ECONOMIA FRAGILIZADA Apesar de representar 65% do PIB, o setor de serviços sempre foi visto como estimulado pela atividade industrial. Agora, com a falta de circulação de pessoas, acaba não escoando a produção industrial. (Crédito:Edilson Dantas)

Apesar desses esforços de socorro aos clientes, há relatos de empresas pequenas com dificuldades em tomar crédito. Os programas governamentais voltados a estimular os empréstimos a essas organizações não deram os resultados esperados. Foi o caso da linha de financiamento de folha salarial, que ficou bastante aquém das expectativas e precisou de reformulação. “O governo está muito atrasado nesses programas. Eles foram mal desenhados e não estão chegando na ponta”, diz Solange Srour, economista-chefe da ARX Investimentos. “As pequenas e médias são grandes empregadoras. Se a ajuda que vem agora não for efetiva, o desemprego vai ficar muito alto por um bom tempo e a renda do brasileiro pode cair demais.”

Os defensores dos mercados de capitais podem argumentar que não são essas empresas que estão cotadas na B3, mas sim as maiores do País, com melhor estrutura para enfrentar a crise. No entanto, mesmo elas podem sentir o efeito dominó de uma quebradeira do mercado. “Não adianta o grande varejista estar bem e com um e-commerce operando fortemente durante a pandemia se os fornecedores estiverem quebrados”, diz Srour. Uma nova aposta do governo é um programa que vai permitir que grandes empresas repassem empréstimos. Uma linha de crédito de R$ 2 bilhões operada pelo BNDES foi criada para permitir que companhias de maior porte direcionem capital de giro a fornecedores e clientes, com prazo de carência de 24 meses e pagamento em até cinco anos. Resta saber se as grandes empresas vão aceitar tomar esse risco de crédito.

Um novo motivo para os mercados de capitais comemorarem surgiu na quarta-feira (17), quando o Comitê de Política Econômica (Copom), do Banco Central, cortou mais 0,75 ponto da taxa Selic. Agora na mínima histórica de 2,25% ao ano há ainda mais incentivos para os investidores migrarem da renda fixa para as negociações na B3. A decisão do BC, contudo, aumenta as pressões de desconexão entre a bolsa de valores e a economia real. “Sinceramente, o efeito de um novo corte de juros para a recuperação econômica é muito baixo. A Selic já está na mínima histórica há muito tempo”, afirma Thiago de Moraes Moreira, economista e professor da pós-graduação do Ibmec-RJ. “Crédito é importante, mas não vai resolver a crise. O que se precisa é de renda.” Para ele, o mercado como um todo está subestimando o impacto da crise no setor de serviços e o seu potencial de contágio para o resto da economia. No primeiro trimestre, houve queda do PIB de serviços de 1,6%, e Moreira acredita que a perda anual possa ficar na faixa entre 7% e 12,5%. Apesar de representar 65% do PIB, o setor sempre foi visto como um segmento mais passivo, estimulado pela atividade industrial. “Mas, quando se tem uma situação de diminuição de circulação das pessoas, os serviços são muito afetados, e acabam não escoando a produção industrial”, afirma. “Isso pode causar excesso de estoques.”

“Não adianta o grande varejista estar bem e com um e-commerce operando fortemente durante a pandemia, se os fornecedores estiverem quebrados” Solange Srour, economista-chefe da ARX Investimentos.

GRANDES RISCOS Há uma máxima segundo a qual bolsa de valores e economia real sempre retratam momentos distintos. O mercado de capitais trabalha com expectativas, enquanto a economia mostra o presente. As corretoras, por exemplo, trabalham com preços-alvo de ação sempre para o ano seguinte, num período entre 12 e 18 meses. Além disso, no caso do Ibovespa, a diferença entre as duas coisas é ainda maior, uma vez que o índice ainda é bastante influenciado pelo peso de exportadoras como a Petrobras e a Vale, que refletem mais a economia mundial do que a doméstica. Por isso, recuperações apontadas na China e nos EUA causam tanto impacto na B3.

Mesmo que o Brasil continue preso eternamente numa grande onda inicial de contaminações sem data para diminuir, o Ibovespa é afetado positivamente se as maiores economias do mundo indicarem que já passaram pelo pior da pandemia. Por esse motivo, o maior risco para a festa na bolsa acabar seria uma segunda onda de casos de coronavírus, forte a ponto de obrigar as maiores potências a se fechar novamente. “Parece que o mercado já precificou uma segunda onda, desde que ela não cause um retorno de lockdown na China ou que Nova York precise fechar de novo”, diz Ricardo Schweitzer, sócio-fundador da empresa de pesquisas Nord Research. Ainda assim, sustos pontuais podem surgir sem aviso. Foi o que ocorreu após a fala de Jerome Powell, do Federal Reserve. Sua declaração de que a recuperação econômica será longa fez as bolsas dos EUA sofrerem a maior queda diária desde março. Nos dias seguintes, o mercado se tranquilizou com a promessa de mais estímulos governamentais.

Por enquanto, os investidores acreditam que os ativos estão protegidos, uma vez que as ações dos bancos centrais parecem suficientes. Mas essa trama de suspense ainda está bem longe de um desfecho. Vivemos um mês de terror que pode ter sido exagerado, seguido por uma correção de preços que logo se encaminhou para a exuberância irracional. Isso é só o começo da história. Os primeiros números mais positivos vindos dos EUA podem indicar que o fundo do poço ficou para trás. Mas uma recuperação econômica verdadeira ainda está distante. Fortes quedas ainda não podem ser descartadas. Afinal, mesmo com a alta dos últimos meses, uma coisa que nunca desapareceu nesse período é uma atípica volatilidade dos preços dos ativos. Se grandes emoções sempre pontuaram a jornada dos investidores, desta vez elas surgem em meio a narrativas irracionais.

ENTREVISTA:
Affonso Celso Pastore, ex-presidente do Banco Central e fundador da A.C. Pastore & Associados
“Ou os fundamentos econômicos melhoram muito, ou o preço das ações vai cair”

Zanone Fraissat

DINHEIRO – O que explica o atual descolamento entre as bolsas e a economia real?
PASTORE – Estamos assistindo a uma queda de braços entre duas forças. Os bancos centrais estão expandindo as suas medidas de auxílio às economias. O Federal Reserve está fazendo um programa de Quantitative Easing (afrouxamento quantitativo, com a compra de títulos privados) muito maior do que na crise de 2008 e 2009. Há também uma expansão muito forte na Europa. No Brasil, há uma queda da Selic que levou a taxa real de juros ao terreno negativo para um ano. Tudo isso causa uma injeção de crédito muito forte, na tentativa de impedir que as empresas quebrem. A outra força são os fundamentos da economia, difíceis de analisar.

Por quê?
A crise é profundamente desconhecida. Não sabemos como vai afetar a dinâmica da economia. Ainda mais quando vemos países que abrem as atividades antes de a curva de contágio ter caído. Só podemos projetar uma recessão forte este ano, mesmo que o Ministério da Economia não goste. A nossa projeção é de queda do PIB de 7,5%, neste ano, com taxa de desemprego entre 16% e 17%.

E ainda assim o mercado está eufórico?
A euforia que vemos é que, no curto prazo, quem ganha é a liquidez. Ela empurrou as ações para cima. A economia está sofrendo uma anomalia. Não se vê essa recuperação espetacular percebida na bolsa. Mas a liquidez, mesmo assim, vai para as ações. Para o investidor, faz mais sentido. Entre ficar ganhando zero em título de renda fixa e ir para a bolsa, ele acha que pode ganhar alguma coisa na segunda opção.

Os investidores são forçados a migrar para a bolsa?
É o movimento de manada. O (economista britânico) John Maynard Keynes (1883-1946) dizia que o comportamento do preço de ações é como um concurso de beleza. Os juízes têm de apostar quem vai ganhar. Como ninguém concorda sobre quem é a mais bonita, o sujeito começa a apostar em quem acredita que os outros também devem apostar. Então, temos uma vencedora por consenso, não porque é considerada a mais bonita.

Esse descompasso vai continuar?
O preço de uma ação é o valor presente de lucros esperados para uma empresa. A relação preço e lucro está acima do que deveria estar. Isso vai ter de se ajustar de uma das duas formas: ou os fundamentos econômicos melhoram muito, ou o preço das ações vai cair.

Na América Latina, a preocupação com a economia pode ser pior?
A América Latina inteira cometeu erros crassos. Em vez de um lockdown no começo, para achatar a curva, fomos levando o problema, dizendo que as medidas de isolamento eram paranoia. O Brasil não está vendo a sua curva de contágio do coronavírus se acelerando, mas a média móvel de sete dias está um pouco acima da dos EUA. Ainda assim, já está reabrindo a economia.

Qual será o custo dessa falha?
Vamos ver como o governo reage. Ele não pode deixar as pessoas morrerem. Mas os custos para segurar a economia vão para a dívida. Isso aumenta o risco, que por sua vez faz o investimento cair. É um círculo vicioso. A relação da dívida pelo PIB chegará a 100%.