Faltavam menos de sete dias para a Páscoa quando o executivo belga Dirk Van de Put aterrissou no Brasil. Pelos corredores da Mondelez, um grupo de funcionários acompanhou o CEO da companhia em sua agenda de três dias no País. De Mechelen, cidade da região flamenga (Bélgica) — o que dá ao seu nome uma pronúncia germânica —, Van de Put respondia a todas as variações de pronúncias do seu nome. Seu foco era absorver os aprendizados do mercado, o quarto maior para a multinacional, diante de um problema bem familiar por aqui: a inflação.

O desafio, porém, não é localizado nos trópicos. Trata-se de um cenário global. Nos Estados Unidos, por exemplo, o índice de preços ao consumidor bateu 8,5% em março no acumulado dos últimos 12 meses, maior patamar desde 1981. E isso virou a maior dor de cabeça do grupo dono das marcas Bis, Club Social, Lacta, Oreo, Sonho de Valsa, Trident, entre tantas outras. “A percepção de que o estresse provocado pela pandemia tinha acabado e de que voltaríamos à vida normal durou pouco”, disse o executivo em entrevista exclusiva à DINHEIRO. Com a guerra na Ucrânia e a Covid-19 ainda no pano de fundo, ele enxerga o aumento da pressão.

O sentimento em si não é o problema para a Mondelez, que prospera em momentos de maior ansiedade. Isso vira gatilho para o sentimento de indulgência, que torna aceitável hábitos antes associados à culpa, como comer guloseimas. Graças a esse fenômeno, os consumidores reforçaram as compras dos chocolates, doces e biscoitos produzidos pela multinacional norte-americana.

A questão para a companhia é entender como fará os repasses do aumento de custos, que chega a quase 40% na indústria, sem comprometer sua participação no mercado. Vai ser necessário ficar atenta ainda à pulverização da demanda nesses momentos de crise, avalia Cristina Souza, líder da área de foodservice na consultoria Gôuvea. Ela explica que, nesses últimos anos, o consumidor vem migrando para produtos artesanais, nicho impulsionado durante a pandemia por causa do aumento do desemprego e da queda do poder aquisitivo no País.

Além disso, outros agentes do mercado de alimentos passaram a surfar nas ondas de consumo das datas comerciais, como a Páscoa. A rede de cafeterias Havanna, por exemplo, lançou os próprios ovos de chocolate, assim como a Bauducco, que trabalhava com colombas pascais para a data, mas apresentou um portfólio completo neste ano. “É o que chamamos de ‘efeito muriçoca’: diversos atores menores mordendo a fatia dos grandes”, disse Cristina.

FOCO NO SEGMENTO Consumo em datas comerciais, como a Páscoa, está na mira de diversos agentes do mercado de alimentos e gera concorrentes para a Mondelez, casos da Bauducco e da rede de cafeterias Havanna, que lançaram seus ovos de chocolate. (Crédito:Divulgação)

Mas gigantes como Mondelez e Nestlé são mais resilientes por terem expressiva presença nos atacarejos, para o qual possuem linhas exclusivas, o que garante crescimento mesmo com a mudança de cenário. A Mondelez, no caso, lançou a farinha do seu biscoito Oreo, que passou a ser incorporada nas receitas de ovos de chocolate caseiros e de outros produtos artesanais.

Para Van de Put, “a ansiedade sobre o futuro alavanca a compra por impulso, numa busca pelo bem-estar”. Pesquisa da Mosaiclab, braço de inteligência da Gôuvea, conduzida em 17 países, incluindo o Brasil, aponta que 33% dos consumidores nesses mercados compraram produtos da categoria de indulgência (as guloseimas) nos últimos dois anos, e a maior parte pretende manter ou aumentar suas compras nesse segmento nos próximos dez anos. Não à toa, a receita global da Mondelez cresceu 8% no ano passado, para US$ 28,7 bilhões, o que representa alta de 10% sobre 2019.

Mesmo com desarranjos na cadeia de suprimentos na América do Norte, provocadas por uma greve geral na planta da marca Nabisco nos Estados Unidos (além dos fechamentos provocados pela Covid-19), que puxou para baixo os resultados da empresa na região, o grupo conseguiu lucrar US$ 4,3 bilhões em 2021, alta de 21% sobre 2020. Na América Latina, os resultados do ano passado ajudaram a sustentar esse crescimento: a elevação do faturamento foi de 13% no comparativo anual, alcançando US$ 2,8 bilhões.

O CASO DO BRASIL O Brasil é uma das vitrines para a multinacional por ser uma plataforma onde suas marcas lideram em quase todas as categorias de produtos. Em 2020, o mercado nacional foi responsável por 40% da receita da região. De acordo com dados de outubro da consultoria Nielsen, as vendas de chocolates no País cresceram 17,8% em valor, enquanto o portfólio da companhia puxou alta levemente acima, de 18,5%, especialmente por causa do Bis Xtra. A categoria foi responsável por 32% da receita da empresa em 2021.

As compras de biscoitos, por sua vez, cresceram 10,8% em valor no cenário nacional, enquanto as linhas de Club Social, Oreo e Trakinas fizeram o grupo norte-americano dar um salto duas vezes maior que o do mercado (20,4%). Líder de portfólio, as marcas do segmento de biscoitos puxaram 47% das vendas do grupo globalmente no ano passado.

Liel Miranda, CEO da operação brasileira, atribui o sucesso aqui à consolidação das marcas e à diversificação dos produtos, que ganharam versões gourmetizadas e mais opções de embalagens, individuais e promocionais — o famoso “leve 5 pague 4”. Além disso, a empresa adotou táticas regionais no País. Enquanto no Nordeste as embalagens ficaram menores, com pelo menos 20g, as regiões Sul e Sudeste ganharam mais versões para o atacado. “Estamos oferecendo mais opções para encaixar nos bolsos dos nossos consumidores”, afirmou Miranda. A linha Lacta, uma das mais vendidas no mercado de chocolates, lançou nesta Páscoa os ovos de chocolate com tripla camada, incluindo um recheio feito com Oreo, vendidos no varejo por cerca de R$ 55 a embalagem de 320g. O novo produto ganhou ainda a versão menor (de 54g), por cerca de R$ 25.

Os esforços para linhas premium fomentam uma demanda que está puxando as vendas do setor neste momento. Globalmente, na Mondelez as categorias de biscoitos e chocolates estavam crescendo 3% e, durante a pandemia, passaram a crescer 4% e 6%, respectivamente. Já os produtos com propostas mais saudáveis cresciam no dobro da velocidade de suas respectivas categorias antes de 2020 e perderam o ritmo, passando a vender 50% a mais que outros produtos de suas categorias nesses últimos dois anos. “Foi o segmento de produtos premium que tomou esse lugar, passando a crescer o dobro sobre a própria categoria”, afirmou Miranda. Mesmo diante de um cenário de inflação, a tendência de manutenção da indulgência no mercado baseia as projeções do grupo para aumentar a receita líquida orgânica em 3% e crescer duplo dígito baixo neste ano.

Mas Van de Put enxerga espaço para aumentar o consumo per capita de chocolate no Brasil, que foi de em média 2,7 kg /habitante em 2020, segundo a Associação Brasileira da Indústria de Chocolates, Amendoim e Balas (Abicab). Para referência, na Suíça, onde mais se consome chocolate no mundo, a média anual é de 8,5 kg por pessoa. Os Estados Unidos estão entre os dez maiores mercados consumidores no mundo (atrás de países europeus), com média anual de 5 kg por pessoa.

DE TUDO UM POUCO Para Liel Miranda, CEO da operação brasileira, o sucesso do segmento de biscoitos se deve à consolidação das marcas e à diversificação dos produtos, que ganharam versões goumertizadas e mais opções de embalagens. (Crédito:Claudio Gatti )

PENETRAÇÃO Para a empresa, o desafio aqui é melhorar a periodicidade e o alcance desses produtos. “Nos esforçamos para caber em todos os bolsos”, disse o belga. “Mas há potencial para aumentar a frequência da compra.” Conforme apuração do Instituto Kantar para a Abicab, entre janeiro e setembro de 2021, o índice de penetração do chocolate no consumo doméstico atingiu 58% dos lares brasileiros.

A multinacional se esforça para alcançar patamares de preços cada vez menores e aumentar a variedade de marcas e embalagens, o que a ajudaria a navegar melhor o período de inflação galopante. Outra forma que a Mondelez encontrou para se conectar com seus consumidores foram os canais digitais, que consolidam uma base de dados sobre o mercado. No primeiro trimestre deste ano, o e-commerce da empresa cresceu 60% ante o mesmo período do ano passado e foi responsável por 20% das vendas de Páscoa, alta de 130% em dois anos.

Esses resultados fizeram a companhia dobrar o valor de investimento no formato digital no Brasil, de R$ 20 milhões em 2020 para R$ 40 milhões em 2021. Durante a Páscoa, o tíquete médio em lojas físicas ficou entre R$ 45 e R$ 55, enquanto no varejo on-line o patamar subiu para R$ 71. Já o site da Lacta tem performance bem superior, com gastos médios de R$ 350 por compra.

Parcela pequena do negócio ainda, responsável por cerca de 5% da receita, o digital está no radar dos executivos como canal mais eficiente para se comunicar com as novas gerações e com seu ecossistema de mercado, especialmente os 500 mil pequenos varejistas que vendem produtos da empresa no País. A Mondelez criou uma plataforma para gerir as vendas de seus distribuidores de forma ágil. Miranda, o CEO no Brasil, diz que adotaram a tecnologia para ter visibilidade semanal desses resultados, que antes só conseguiam acompanhar a cada dois meses.

PARADOXO DO CONSUMO A Mondelez viu que, embora o seu consumidor deseje produtos mais saudáveis, o termo ganha um sentido amplo, conforme o conceito se mistura à imagem da marca no mercado. Van de Put diz que “há pessoas que associam saúde a um produto de origem local, ainda que o valor nutricional possa ser o mesmo do industrializado”.
Identificar tendências, mudanças de hábito e adequação desses novos comportamentos a uma equação que mantenha as margens financeiras, a empresa está atenta à pressão sobre a cadeia fornecedora, onde a Mondelez enfrenta seu maior desafio hoje. Não apenas pelo gargalo logístico, mas — e principalmente — pela responsabilidade social e pelo compliance na ponta inicial.

Globalmente, o cacau é produzido por pequenos produtores e depende de uma agricultura de trabalho intensivo, já que as plantas não podem ficar expostas à luz do sol e seu fruto é sensível, o que impede que a colheita seja mecanizada. Além disso, Costa do Marfim e Gana são, respectivamente, os maiores produtores de cacau no mundo, responsáveis por quase 70% da matéria-prima que abastece a indústria global. A multinacional, assim como as suas rivais Nestlé e Hershey ‘s, são dependentes da produção desses dois países e enfrentam cobranças por mais transparência nessa cadeia.

No caso da Mondelez, a resposta foi a criação do programa Cocoa Life, em 2012, do qual vem 68% de todo o cacau utilizado para a produção do chocolate na multinacional hoje. O projeto estabeleceu um metódo para controlar esse sistema, exposto a uma série de questões relativas à qualidade de vida desses produtores, sua renda, falta de acesso à infraestrutura urbana e, principalmente, ao trabalho infantil.

VENDAS EM ALTA A linha de biscoitos Oreo, a exemplo de Club Social e Trakinas, teve crescimento de 20,4% em valor no País, o dobro do obtido pelo mercado. (Crédito:Divulgação)

ACUSAÇÕES A empresa mobiliza ONGs, governos e equipes locais para garantir o cumprimento de leis, coibir o trabalho infantil e o desmatamento. Se cumprir essa agenda, o produtor de cacau segue no programa e recebe, segundo a Mondelez, pagamentos acima do mercado pela produção. Mas, desde o começo deste mês, a empresa sofre acusações de comprar o cacau para a sua fábrica da marca Cadbury de fazendas que exploram mão de obra infantil.

As acusações vêm da investigação realizada pelo programa de reportagem documental Dispatches, veiculada pelo britânico Channel 4, que afirma ainda que os produtores locais seriam remunerados com 0,11 (de libra) para cada 1 (de libra) de chocolate vendida no mercado, margem pequena para cobrir os custos da plantação e impostos locais e que impossibilita a contratação de gente para o cultivo. Enquanto isso, os varejistas ficariam com 29% dessa receita e a indústria teria, supostamente, um lucro de 10% sobre as vendas.

“É um problema de sistema para o qual precisamos olhar”, afirmou o CEO global da Mondelez, em sua primeira entrevista sobre o assunto. Ele explicou que, nesses casos, ONGs e equipe local são acionadas para averiguar as acusações. Lembra, no entanto, que a empresa não compra diretamente dos produtores, e sim de intermediários. “Nossos fornecedores precisam seguir essa cartilha, mas é uma escala massiva. Estamos falando de centenas de milhares de produtores em áreas remotas”, disse. Sim, mas que em última instância só agem assim porque uma gigante consome sua produção.

Por aqui, a empresa investiu mais de R$ 9 milhões no programa Cocoa Life para beneficiar 1 mil produtores da indústria de cacau no Pará e na Bahia. Ainda assim, precisa importar cerca de 80% da matéria-prima para atender a necessidade da produção de chocolates no País, que abriga duas fábricas da empresa, inclusive a maior planta produtiva no mundo, sediada em bairro industrial de Curitiba (PR), e exporta para mais 11 mercados.

O Brasil também se recupera dos efeitos de uma praga da vassoura de bruxa, doença do cacaueiro causada por um fungo, que atingiu as fazendas de cacau nos anos 1990. O trabalho é para que o País retome seu papel como exportador no cenário global. Miranda, o CEO da operação no País, diz que “até 2025, queremos que todo o cacau usado nas plantas brasileiras seja produzido nacionalmente e de forma sustentável”.

Até o fim deste ano, a meta é que 30% do cacau venha dos produtores que fazem parte do programa aqui. Uma elevação de 10 pontos porcentuais. A Mondelez lida com cenários complexos nas duas pontas da cadeia, a nível local e regional, sem perder o ritmo de se renovar no mercado. Um desafio cada vez maior e que motiva Van der Put a rodar o mundo em busca de novas e nem sempre doces respostas.

ENTREVISTA: Dirk Van de Put CEO global da Mondelez
“Estamos lidando com essas acusações de forma séria e tentando localizar essas fazendas”

Claudio GattiDirk Van de Put. (Crédito:Claudio Gatti )

Mesmo com o Cocoa Life, a empresa enfrenta acusações de comprar cacau de fazendas que exploram trabalho infantil. É preciso rever a abordagem do programa?
Não acredito que seja uma questão de mudar nossa abordagem, e sim reforçá-la. Com o contato que temos com as ONGs e os governos locais, vemos que temos o melhor programa para lidar com essas questões da cadeia de fornecimento. O verdadeiro desafio está na escala e na complexidade social e econômica nesse ambiente.

E o que tem sido feito para resolver isso?
Estamos dialogando com centenas de milhares de produtores, que não necessariamente estão entendendo a questão de forma integral. Precisamos dar continuidade a esse trabalho para garantir a compreensão do problema e qual é o nosso direcionamento. É uma questão de acelerar e intensificar a agenda do programa.

A empresa deve rever a política de repasse aos produtores?
Se você for à Costa do Marfim e a Gana, infelizmente, vai encontrar os filhos desses produtores trabalhando na cultura do cacau. Uma realidade que também existe aqui no Brasil. Isso precisa mudar e algo deve ser feito a respeito. A questão, a meu ver, é descobrir como promover uma mudança sistemática quando esse trabalho requer contato numa base diária.

Os governos deveriam intervir?
O próprio ministro da agricultura na Costa do Marfim explicou que muitos desses produtores vivem em áreas de preservação. Isso quer dizer que, para reduzir o impacto sobre o ambiente, seria preciso remover boa parte desses produtores, algo impossível de ser feito e que deixaria essas pessoas sem renda. É um problema bem mais profundo.

Mas o que a Mondelez está fazendo sobre as acusações recentes?
Estamos lidando com essas acusações de forma séria e tentando localizar essas fazendas, mas não temos os nomes até agora. De forma geral, temos ONGs e nosso próprio pessoal mobilizado para checar as denúncias. Também trabalhamos com imagens de satélite das áreas das fazendas de cacau e do sistema na cadeia de fornecedores. Unimos todos esses dados numa base que nos permite avaliar como a agenda do Cocoa Life está evoluindo com aquele produtor. Se ele seguir a orientação do programa, pagamos um valor acima do mercado pelo cacau.

E no caso dos produtores que não seguem as diretrizes do programa?
Nesses casos, reforçamos a abordagem e pedimos a ele que resolva as questões em desacordo com o que estamos tentando promover. Caso nada se resolva, o produtor é removido do programa e não integra mais a nossa cadeia de fornecimento. É importante fazer com que todos entendam a dimensão do problema que estamos lidando.