A fachada da fábrica da Volkswagen em Wolfsburg, na Alemanha, sugere que construir e reconstruir, avançar e recuar, definir estratégias e adiar planos fazem parte da história da montadora criada em 1937. A diferença nos tons marrons dos tijolos aparentes da empresa, assentados em épocas diferentes, relembram que, mesmo bombardeada pelas Forças Aliadas durante a Segunda Guerra, a companhia se reergueu. Atualmente, a empresa não enfrenta nenhum ataque a bomba, mas pode-se dizer que atravessa um período de apreensão, especialmente no Brasil. Desde março do ano passado, a crise sanitária provocou a paralisação das operações e de grande parte das montadoras instaladas no País. No caso da Volkswagen, foram pouco mais de dois meses durante 2020. Um ano depois, a queda nos níveis de produção e de vendas ainda gera incertezas entre os fabricantes e em toda a cadeia do setor.

O lançamento do SUV Taos, no segundo trimestre, vai marcar o fim de um ciclo de investimentos de R$ 7 bilhões da Volkswagen no Brasil. Nos últimos três anos, a montadora alemã promoveu uma renovação completa na sua linha ao disponibilizar ao mercado 20 produtos, entre nacionais e importados. A diversificação no portfólio, que incluiu o modelo híbrido Golf GTE, e a adoção de novas estratégias de vendas, com o avanço do digital, deram fôlego à vice-líder do mercado nacional na disputa pelo topo com a General Motors. As medidas adotadas se mostraram eficientes diante do crescimento de 5 pontos percentuais de participação de mercado nos últimos cinco anos. Mas com os índices de contaminação e mortes pela Covid-19 em alta nas últimas semanas pelo Brasil, ela mais uma vez decidiu suspender as operações nas suas quatro fábricas, para preservar as condições de saúde dos funcionários. O País chegou a registrar 3,6 mil óbitos em 24 horas no último dia 30, o mais alto nível desde a primeira morte em território nacional, em março do ano passado. Os cerca de 9 mil funcionários das plantas em São Bernardo do Campo, Taubaté e São Carlos (em São Paulo) e São José dos Pinhais (no Paraná), estão parados desde o dia 24 de março, com retorno previsto às atividades na segunda-feira (5).

Christophe Gateau

“Estamos vendo agora a economia de escala que nos tornará lucrativos no longo prazo” Ralf brandstatter ,CEO global da Volkswagen.

O argentino Pablo Di Si, presidente da Volkswagen no Brasil e na América Latina, não descartou interrupções mais prolongadas, caso o cenário desenhado pela doença ganhe contornos mais drásticos nas próximas semanas. “Precisamos voltar a trabalhar de uma forma responsável, controlada, com protocolos”, afirmou o executivo, em entrevista à DINHEIRO. “Está comprovado que o contágio acontece fora das fábricas. Então, precisamos cuidar uns dos outros.”

Pelos cálculos do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, que atende 30,5 mil trabalhadores em cinco montadoras , 4.405 se afastaram desde o início da pandemia, até 29 de março deste ano, por causa da Covid-19. Até aquela data, dez haviam morrido.

O movimento adotado pela montadora alemã serviu de alerta às concorrentes que também produzem no Brasil. Em acordo com os sindicatos locais, General Motors, Honda, Mercedes, Nissan, Renault, Scania, Toyota e Volvo seguiram o caminho e suspenderam as atividades. Algumas delas adotaram o banco de horas, enquanto outras optaram pela antecipação das férias de parte dos funcionários, que têm retorno previsto ao trabalho no próximo dia 22. A paralisação das operações nas fábricas, mesmo com intervalo mais curto em relação a do ano passado, é um duro golpe nos planos de recuperação da indústria, que em 2020 viu a produção cair 31,6%, para 2 milhões de unidades, e as vendas, 26,2%, para o mesmo volume, em comparação a 2019. Em março do ano passado, o mercado brasileiro chegou a fabricar apenas 1.847 carros, redução de 99% sobre o mês anterior, o pior resultado desde o surgimento da indústria automobilística no País, em 1957. As exportações também apresentaram diminuição, de 24,3%, para 324,3 mil veículos, impactadas pelas restrições de circulação nos países, especialmente na Argentina, principal destino dos carros fabricados no Brasil.

No caso da Volkswagen, que apresentava recuperação em V, após a crise econômica de 2015 colocar fim a sete anos de alta nos negócios de automóveis, o crescimento agora se mostra em W. As vendas de automóveis e comerciais leves, que chegaram a 414,4 mil unidades em 2019, caíram para 327,6 mil no ano passado. Apesar disso, a participação de mercado subiu de 15,59%, em 2019, para 16,80%, em 2020, logo atrás da líder General Motors (17,35%). Ou 5 pontos percentuais desde 2016 (11,50%).

Para Di Si, a reação começará no segundo semestre, com a vacinação em massa de boa parte da população. “Sempre fui otimista, mas mantenho os pés no chão. Não vai ser tudo o que as pessoas acreditavam.” As projeções da Anfavea, ainda em janeiro, eram de crescimento de 25% da indústria, com a fabricação de 2,5 milhões de unidades. O executivo da Volkswagen acredita em um 2021 positivo, mas com crescimento entre 15% e 20% (entre 2,3 milhões e 2,4 milhões de unidades). A própria associação deixa claro que as circunstâncias da pandemia (queda na oferta por causa das fábricas fechadas e do índice de confiança do consumidor, além da falta de peças, por exemplo) exigem cautela nas estimativas, que poderão ser revistas até meados do ano.

A boa notícia para a Volkswagen é que o Brasil e os demais países da região operam em zona de equilíbrio financeiro e devem voltar a apresentar lucro neste ano. A estratégia de produtos tem surtido resultados na América do Sul, onde a empresa produziu veículos baseados na plataforma MQB. Foram os casos, por exemplo, do Nivus, lançado virtualmente no ano passado e com 2,5 mil unidades comercializadas em apenas 48 horas, e do T-Cross, apresentado em 2019 e líder do mercado de SUVs em 2020, com 60 mil exemplares vendidos. Ralf Brandstätter, CEO global da Volkswagen, disse durante a apresentação dos resultados da companhia, no último dia 17, que agora a empresa vê a economia de escala “que nos tornará lucrativos no longo prazo”.

Para adaptar as operações à nova realidade, a empresa deu início a um programa de reestruturação da operação, com a redução de 35% do quadro funcional (cerca de 4,5 mil pessoas) nas quatro plantas e investimentos na fábrica de Taubaté. “Reservamos 100 milhões de euros para reestruturar os negócios no Brasil”, afirmou Alexander Seitz, diretor financeiro da marca. Sem geração de caixa durante quase três meses em 2020, a Volks teve de contrair dívida, de valor não divulgado, a ser paga nos próximos anos.

PREOCUPAÇÃO A queda na venda de automóveis em 2020 foi motivada também pelas restrições de funcionamento das concessionárias no País. O segmento tem 7,3 mil unidades distribuídas por mil municípios, além de empregar diretamente 320 mil pessoas. Do total de lojas, 1,8 mil estão concentradas em São Paulo, que, segundo a Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave), é responsável por 30% dos negócios. O presidente Alarico Assumpção Júnior tem alertado para a dificuldade de recuperação das empresas que, apesar de terem adotado protocolos sanitários rígidos desde o início da pandemia, voltaram a ter as atividades interrompidas por causa de lockdown.

A Fenabrave previa alta de 16,5% nos negócios no primeiro trimestre, mas já admite rever os números de 2021 em virtude não só do fechamento das concessionárias, mas também pela demora para a entrega de alguns modelos decorrente da falta de peças e pelo aumento no valor do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) em São Paulo, o que deve provocar alta nos preços dos veículos e prejudicar ainda mais as vendas. O governo estadual reajustou de 12% para 13,3% a cobrança do imposto para carros novo em 15 de janeiro, e na quinta-feira (10), a alíquota passou para 14,5%. Já os veículos usados pagam 5,5% desde janeiro (era 1,8%), mas passou para 3,9% desde a quinta-feira (10).

Não bastassem os aumentos do ICMS no principal mercado do País, as fábricas paradas e as concessionárias fechadas, a indústria automobilística ainda sofre com a falta de insumos, como semicondutores (chips), que na primeira quinzena de março provocaram a interrupção das linhas de produção da GM e da Honda. Para piorar, um incêndio, no último dia 19, na fábrica da Renesas Eletronics, no Japão, destruiu 11 unidades de produção de chips. A empresa é responsável pela fabricação de 30% dos semicondutores utilizado pela indústria automobilística no mundo e só deve voltar a operar em três semanas. Essa redução da oferta de componentes eletrônicos causa estragos em cadeia. No início da semana, a VW bloqueou as solicitações de locadoras até o final deste mês. A decisão foi tomada por causa da demanda mais alta do que produção. Outras montadoras, como a Fiat e a GM, também suspenderam os pedidos de alguns carros. No momento, 200 mil pedidos estão na fila.

MÁ NOTÍCIA Apesar da empolgação com os veículos eletrificados e híbridos, Di Si acredita ser difícil a criação de linhas de produção no País. O governo reduziu a taxa de importação dos modelos, mas o setor não é considerado estratégico, diferentemente do que acontece em muitos países da Europa e da Ásia, que oferecem benefícios aos consumidores. Para o executivo, é preciso também uma análise mais profunda em relação à cadeia produtiva. “Vai gerar empregos? Como as indústrias serão estimuladas a continuar no País com a mudança da geração de carros a combustão?”, disse ele, ao destacar que o consumidor vai definir o tamanho do mercado elétrico no Brasil. “Porque eu posso trazer para o Brasil 1 mil, 3 mil, 1 milhão (de unidades).” Na verdade, a estratégia global da empresa já se decidiu e transformará Wolfsburg na maior produtora de elétricos do mundo.

Apesar da aposta na eletrificação – o Brasil no máximo será mercado, e não polo produtor –, a Volks trabalha em um projeto de um carro 100% ecológico, tendo como base o etanol. A ideia é, a partir do combustível líquido, desenvolver tecnologia em células de combustível com capacidade para abastecer os veículos elétricos. Se a iniciativa costurada com o apoio da União da Indústria de Cana-de-Açúcar obtiver êxito, o carregamento dos carros por tomadas não seria mais necessário e o Brasil ficaria em uma situação privilegiada, por ser o maior produtor da commodity no mundo. “As pesquisas começaram este ano. Podem demorar até alguns anos. Mas precisamos acelerar.”

AMEAÇA À RETOMADA Setor automotivo busca assimilar novos valores do ICMS para comercialização de carros novos e usados. Governo paulista afirma que o segmento foi beneficiado por renúncias fiscais por 30 anos. (Crédito:Divulgação)

Especialista no setor automobilístico, Paulo Cardamone acredita que a passagem dos atuais motores a combustão para híbridos flex e até a bioelétricos seriam a solução mais adequada para o Brasil por não necessitar de vultosos investimentos em infraestrutura. Para o CEO da Bright Consulting, o mais importante é como a eletricidade será transferida para a tração do veículo. No caso do Brasil, o ideal seria a bioeletrificação, a geração de eletricidade a partir do etanol. “Você abastece o carro com etanol, um reformador transforma o bicombustível em hidrogênio, que gera eletricidade para o motor elétrico”, disse ele, ao destacar em seguida que não haveria necessidade de rede de abastecimento elétrico e a bateria seria 25% menor. Uma corrida contra o tempo. A Volkswagen está pronta para todos os cenários. Ter sido forjada na Guerra a deixou calejada para todas as batalhas.

VOLTSWAGEN

Em meio aos problemas na pandemia e que afetam a VW e as demais montadoras, a marca aposta pesado no segmento elétricos. Na terça-feira (29), a montadora anunciou uma mudança e revolucionária no nome de sua marca nos EUA. Por lá, e empresa será a “Voltswagen of America.” A iniciativa fez parte de uma ação de marketing para o 1º de Abril, o Dia da Mentira, mas simboliza seus investimentos reais nos elétricos. Ela vai lançar 70 carros elétricos e 60 híbridos nos próximos seis anos em todo o mundo. Em 2020, a VW triplicou a venda de elétricos em comparação a 2019. Foram 134 mil unidades. No ano, a empresa projeta vender 450 mil.

No Brasil, seis produtos entre híbridos e elétricos serão lançados nos próximos cinco anos. A empresa chegou a comercializar o Golf GTE híbrido plug-in, importado em sua sétima geração, mas o carro teve as suas últimas unidades vendidas à locadora Unidas no fim de 2020. Dessa vez, a Voltswagen foi uma jogada no Dia da Mentira, mas a ação poderá servir de teste para a marca medir a aceitação dos clientes para, quem sabe, a piada de hoje se tornar a realidade de amanhã.

ENTREVISTA: PABLO DI SI
“Não adianta fechar fábrica se continuarmos com aglomerações”

Claudio Gatti

A Volkswagen está financeiramente preparada para uma paralisação mais longa? Qual o impacto disso nos fornecedores?
Seria um baque fortíssimo para todos. Se tivermos que parar por mais tempo, vamos parar. E depois veremos a parte financeira. Mas não adianta fechar fábrica se continuarmos com aglomerações nas praias, nas festas clandestinas e nos churrascos. Não foi fácil tomarmos a decisão de paralisar as fábricas por 12 dias. Não estamos de férias. Se não mudarmos o comportamento, não adianta fechar o País. Cada um tem que fazer a sua parte.

Há riscos de demissão nas fábricas da Volkswagen?
Não existe corte nos nossos planos. Mas se o mercado parar por três, quatro meses, teremos de conversar com os sindicatos.

Muita gente depende do trabalho diário para ter o que comer. Qual a saída diante das restrições de circulação?
O correto é fornecer o auxílio emergencial e, o quanto antes, garantir a vacinação às pessoas mais necessitadas, que precisam sair de casa para trabalhar.

O sr. acredita que enquanto a vacinação seguir no ritmo atual, haverá ainda muitas restrições de funcionamento no comércio e em outros segmentos?
Temos protocolos na Volkswagen. Então, só entram na fábrica os colaboradores de serviços essenciais e com todos os cuidados. Se você mantiver isso em um restaurante, em uma concessionária, deveria funcionar. O problema é que os protocolos não estão sendo respeitados. E quando isso acontece, começam os problemas.

Há muitas críticas ao presidente Jair Bolsonaro por causa da condução da pandemia. As reclamações são justas?
Primeiro, somos uma empresa apolítica. Segundo, sou estrangeiro. Terceiro, amo o Brasil. Não tenho autoridade para falar sobre essas coisas. Nós, como empresa, respeitamos o país onde estamos, empregando pessoas. Os processos decisórios são dos governos.

E o que pode dizer a respeito da disputa entre o governo federal e os governos estaduais em relação às vacinas e ao processo de vacinação?
Aí eu te falo não da política, mas sobre como deveria ser o sistema. Acho que o sistema de vacinação tem de ser centralizado e sem o sistema privado, porque o poder do dinheiro pode desviar o foco das pessoas mais necessitadas. Acho necessário um esforço unificado que olhe a população como um todo, começando pelos mais carentes e também por faixa etária e com comorbidades. A única forma de fazer isso é de maneira coordenada. E o governo federal deve coordenar.

Qual a sua opinião sobre o mercado brasileiro de automóveis?
O mercado brasileiro é fascinante, dinâmico, moderno. Muda o tempo todo. São muitos desafios, há problemas enormes de logística, mas muitas oportunidades. Não possuímos uma ligação de trem ou várias unindo o Brasil. Se tivéssemos um plano estratégico para criar isso, imagine o quanto o custo (do transporte) cairia e quantos empregos seriam gerados por dez, quinze, vinte anos.

E o que falta?
Falta muito. Plano de logística, plano tributário, plano do etanol. Precisamos de pessoas que pensem não só na política atual, mas nas próximas gerações. E são tantos os desafios que, muitas vezes, ficamos olhando apenas pra o dia a dia: emprego, produção, paralisação de fábricas etc. O governo brasileiro deveria determinar quatro ou cinco indústrias estratégicas para o País. E todos nós investirmos e olharmos um pouco mais para a frente.

Qual a sua posição a respeito da decisão de algumas montadoras de encerrar a produção no País, como aconteceu com a Ford?
Não falo das outras montadoras. Ma só que posso falar que estou no Brasil há 14 anos, em diferentes indústrias, como agrícola e automobilística. E esse não é um País fácil para trabalhar. Por isso é que também tem excelentes profissionais. Tem tanta complexidade que você acaba se acostumando a atuar em um ambiente difícil. Mas isso não se aplica apenas às montadoras, mas a todos os negócios.