Horas antes, o Brasil havia confirmado o primeiro óbito em decorrência do coronavírus e a Câmara dos Deputados recebera um pedido de impeachment de Bolsonaro, protocolado pelo parlamentar Leandro Grass (Rede-DF). Os brasileiros estavam reclusos, mas nem um pouco quietos.

Talvez as contingências tenham se somado para tirar da garganta um desabafo que estava entalado. Afinal, em quase 15 meses de governo Bolsonaro, nenhuma boa notícia havia surgido. Nem na economia, nem na saúde, e muito menos na educação, na cultura e na ciência, territórios estrategicamente demolidos por uma presidência que se orgulha da própria ignorância. Na noite seguinte, os gritos que haviam começado em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília avançariam por mais cidades. Não faltavam motivos para indignação, amplificada pelas atitudes insanas de Bolsonaro nas últimas semanas. Até alguns de seus apoiadores mais ferrenhos haviam debandado, questionando sua permanência no cargo. Foi o caso de Janaina Paschoal (PSL-SP), para quem a confraternização do presidente com apoiadores diante do Palácio do Planalto no domingo 15 consiste em “crime contra a saúde pública” e “homicídio doloso”. Ao discursar na Assembleia Legislativa de São Paulo, a deputada estadual que foi coautora do pedido de impeachment de Dilma Rousseff afirmou: “Esse senhor tem que sair da Presidência da República”. É bom lembrar que Janaina foi eleita pela mesma legenda de Bolsonaro – que hoje está sem partido.

O arrependimento no apoio dado ao presidente também foi expresso pelo governador de São Paulo, João Doria. “Me arrependo, sim”, disse Doria em entrevista à CNN Brasil, emissora que iniciou as transmissões justamente no dia 15. As falas recentes de Janaina e Doria, que em 2018 ajudaram a eleger o capitão reformado e também se beneficiaram do fenômeno eleitoral que ele protagonizou, podem não resolver as mazelas que o presidente impôs à nação, mas externam um sentimento crescente, dentro e fora do País. Em sua coluna Cartas do Rio, para a rede pública alemã Deutsche Welle, o jornalista Philipp Lichterbeck escreveu que “O Brasil é liderado por um psicopata” e que o País pode estar diante de sua “peste negra”. Embora sem usar as mesmas palavras, editorialistas dos principais jornais brasileiros e autoridades sanitárias (incluindo a alta cúpula da Organização Mundial de Saúde) manifestaram-se de forma semelhante.

Seria diferente sem o coronavírus? Talvez. A imprudência com que Bolsonaro tem lidado com a pandemia reafirma seu total desrespeito para com a vida humana. Isso ficou patente nas diversas vezes em que ele defendeu a tortura e torturadores, contrariando um dos princípios da Constituição Brasileira – e, evidentemente, do bom-senso. O político que cresceu apoiado por milícias e cujo gesto mais característico durante a campanha (mantido inclusive depois de eleito) era simular um revólver com os dedos, é por si só uma ameaça à proteção da vida. Para piorar, ele jamais escondeu a própria incapacidade de lidar com os desafios que cabem a um chefe de Estado. Contrariando todas as expectativas de retomada do crescimento, a economia brasileira permaneceu inerte em 2019. Com o coronavírus, a bolsa desabou, o dólar disparou e as projeções para o PIB são cada vez mais modestas. Qualquer presidente teria dificuldade em apontar um caminho seguro em meio a esse caos global. No caso de Bolsonaro, as declarações e atitudes são as piores possíveis. E é dessa forma que ele explicita sua inadequação ao cargo para o qual foi eleito – e que começa a ruir de forma inexorável.