Nos dias 11 e 12 de novembro, na cidade de Maracay, na Venezuela, ocorreu o primeiro encontro preparatório para criar no país a estrutura organizacional do Fuerza Alternativa Revolucionaria del Común, também conhecido como FARC, partido político colombiano fundado por ex-guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – a FARC mais antiga e, teoricamente, extinta. Nos últimos cinco anos, o governo venezuelano de Nicolás Maduro supervisionou a negociação para o acordo de paz firmado entre os guerrilheiros e a Colômbia, a pedido dos rebeldes. Em sua página na internet, o Partido Comunista Colombiano (PCC) descreveu o encontro como um “exercício imprescindível no complexo cenário criado pelo imperialismo, com a cumplicidade aberta do fascismo e da ultradireita, que arremetem contra a República Bolivariana da Venezuela.” O difícil é entender a que república eles se referem.

O fato é que, na semana passada, a República Bolivariana da Venezuela deu um passo gigantesco em direção ao colapso total. Em dois dias, as agências de risco Standard & Poors, Moody’s e Fitch declararam um “default seletivo” de papéis emitidos pelo governo e pela Petroleos de Venezuela (PDVSA), petroleira que é a principal companhia do país. O anúncio do calote se deu dias depois de uma reunião entre governo e credores internacionais da PDVSA, convocada por Maduro. No domingo 12, o ditador havia declarado que a Venezuela jamais entraria em default. Na terça-feira 14, o país deixou de honrar débitos de US$ 200 milhões. Sua dívida externa é estimada em US$ 150 bilhões.Cerca de US$ 50 bilhões estão nas mãos de credores privados. Até o final de 2018, há, pelo menos, US$ 9,5 bilhões em pagamentos de juros e parcelas de dívidas a serem feitos, sendo que o Banco Central de Maduro dispõe de menos de US$ 10 bilhões em reservas. Segundo analistas, a falência estatal é inevitável.

Apontar um único culpado para a derrocada venezuelana é difícil. “Creio que a crise econômica seja parcialmente sistêmica, resultado dos desequilíbrios globais deslanchados com a crise de 2008”, afirma Andrea Ribeiro Hoffmann, professora do Instituto de Relações Internacionais da PUC do Rio de Janeiro. “Mas a Venezuela foi mais afetada em função da falta de diversificação da economia, erro cometido por todos os governos nas últimas décadas, desde o Pacto de Punto Fijo (acordo de governabilidade entre os principais partidos do país, firmado em 1958), até os tempos de Hugo Chavez e Maduro.” Já na política, diz a professora, a Venezuela é uma caricatura do contexto global de fragilidade democrática, com a fragmentação radical dos movimentos de extrema esquerda e direita.

Comércio parado: unidade de processamento de carnes do frigorífico Minerva. A proteína animal era um dos principais produtos de exportação brasileiros (Crédito:Divulgação)

É nesse contexto que a chegada do partido colombiano FARC à Venezuela deve acender todo tipo de alerta na comunidade internacional. Existe o receio de que grupos extremistas encontrem no país um campo fértil para a criação de guerrilhas. “Há um aspecto importante da crise venezuelana que é a falta de capacidade da oposição em se organizar”, afirma José Niemeyer, coordenador da graduação em relações internacionais do Ibmec/RJ. “Ao mesmo tempo, é difícil estabelecer a real fidelidade das Forças Armadas, do serviço secreto e das forças policiais ao governo de Maduro.” Guardadas as devidas proporções, o cenário venezuelano atual pode ser comparado à situação da Síria. Um governo falido, uma drástica carestia, escassez de alimentos e uma população dividida em extremos formam o ambiente ideal para o surgimento de uma briga generalizada. O resultado: uma possível guerra civil. Em junho, protestos generalizados na capital Caracas já deixaram um saldo de mais de 100 mortos.

Do lado brasileiro, há pouco o que se fazer. Segundo Niemeyer, o País não deve abandonar a postura diplomática e conciliadora, que permeia as relações internacionais brasileiras desde os tempos do Barão do Rio Branco. Na segunda-feira 13, o chanceler brasileiro, Aloysio Nunes Ferreira, durante encontro com seu correlato italiano, Angelino Alfano, ressaltou a gravidade da situação. Em nota, ambos concordaram com a necessidade de restaurar o estado de direito e a democracia no país. “Só um diálogo político real, conduzido de boa-fé, pode permitir a superação dos gravíssimos problemas de ordem institucional, econômica e social que o país atravessa”, disseram os chanceleres. A relação entre chavistas e o governo brasileiro, que era de proximidade durante os governos Lula e Dilma, hoje, é protocolar. Já as relações comerciais, opulentas no início da década, despencam de forma acelerada.

Na garagem: a Toyota tinha intenção de vender o compacto Etios, produzido em Sorocaba (SP), no mercado venezuelano, mas não revela se os planos foram mantidos (Crédito:125/5.6 Produções Fotográficas)

Em 2012, quando as trocas entre os países tiveram seu maior pico, as exportações brasileiras para a Venezuela superaram a cifra de US$ 5 bilhões, segundo dados do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços, com um saldo positivo de mais de US$ 4 bilhões na balança brasileira. Os produtos manufaturados e semimanufaturados representaram 72% do total exportado, com destaque para o setor de proteína animal. As carnes desossadas de bovinos, congeladas, e as carnes de frango, congeladas e cortadas em pedaços, responderam por quase 30% da demanda. Desde então, as vendas ao país vizinho só caíram. Este ano, a expectativa é de que o comércio bilateral volte para os níveis de 2003 (veja quadro abaixo). Esse processo tem afetado empresas como o frigorífico Minerva e a BRF, maior processadora de alimentos do País, que vendeu seus últimos produtos diretamente ao mercado venezuelano em 2014. Na indústria automotiva, a Toyota tinha esperança de exportar o compacto Etios, fabricado em Sorocaba, no interior de São Paulo, ao vizinho. Esses planos, agora, estão em risco – procuradas, as companhias não se manifestaram. Outras multinacionais, como GM e Coca Cola, também encerraram suas operações no país.

Diplomacia e paciência: Aloysio Nunes (acima), chanceler brasileiro, prega um diálogo político de boa fé com o governo de Maduro (abaixo), que tenta aliviar o caixa para se manter no poder (Crédito:Mateus Bonomi)

O calote venezuelano impacta empresários nacionais. Um levantamento feito pela Fundação Getúlio Vargas, coordenado pelo professor Oliver Stuenkel, aponta que companhias brasileiras têm US$ 6 bilhões a receber por contratos fechados. A maior parte dessa dívida já está atrasada. Quem continua a vender para lá, aceita apenas pagamentos à vista ou antecipado. Mas a escassez de dólares e diferenças nas taxas de câmbio oficiais dificultam ainda mais os negócios. O resultado dessa incapacidade de compra se vê nas ruas. A inflação acumula 249% este ano. O índice de pobreza extrema, calculado pelas principais universidade do país (o governo deixou de publicar dados oficiais), chegou a 52% no ano passado. A mesma pesquisa mostra que 73% dos venezuelanos relataram perda de peso involuntária de, em média, 8,6 kg. Falta de tudo à população, de comida a remédios, enquanto Maduro se agarra ao poder como pode.

PARAÍSO DA ESPECULAÇÃO Ao mesmo tempo em que se espera que a falência econômica e social ajude a derrubar o governo chavista, há temores de que o calote, no fim das contas, ajude Maduro a ganhar uma sobrevida. “Quanto mais imprevisível o mercado, maiores são as chances de insiders próximos ao governo fazerem ou lavarem dinheiro”, afirma, em seu blog, o economista Fernando Del Toro, que comanda o Caracas Chronicle, site que produz notícias e relatórios sobre a situação política e econômica da Venezuela. Em outro artigo, o especialista em mercado financeiro Javier Ruiz classifica a situação venezuelana como um “calote de Schrödinger”, em alusão à experiência desenvolvida pelo físico austríaco Erwin Schrödinger para explicar o paradoxo da mecânica quântica. O experimento consiste em imaginar um gato preso dentro de uma caixa, com um frasco de veneno: só é possível saber se ele está vivo ou morto se a caixa for aberta, mas, se isso for feito, altera-se a possibilidade de o gato estar vivo ou morto.

A questão é que, ao não comunicar com precisão o atual estado de suas finanças, o governo venezuelano pode causar um pânico no mercado, permitindo a insiders comprarem barato títulos públicos ou da PDVSA, com a garantia oculta de que serão restituídos pelo próprio governo. “O caos administrativo somado à opacidade chavista denota uma perigosa estratégia que pode culminar em um default e na pior batalha legal da história do nosso país”, escreveu Ruiz. “O certo é que quanto mais opaco for o mercado, maiores são as oportunidades para os poucos que detêm o privilégio de saber o que o governo planeja fazer.” No final das contas, a postura de Maduro pode ser uma estratégia para forçar a queda dos preços dos papéis venezuelanos a patamares mínimos, conseguindo, dessa forma, recomprá-los e aliviar seu caixa.

Também não foi uma surpresa, nesse contexto, o fato de a Rússia ter firmado um acordo de reestruturação de uma dívida de US$ 3 bilhões. Isso acontece mesmo depois de Caracas ter descumprido um acordo semelhante firmado no ano passado. Em Washington, há o temor de que a Venezuela se transforme na nova Cuba. Moscou teria a possibilidade de explorar petróleo e firmar parcerias militares, a poucas horas de voo dos Estados Unidos. Para a professora Andrea Ribeiro Hoffman, se, por um lado, a crise venezuelana é fruto de dinâmicas internas, por outro, a interseção com interesses de outros países a torna mais complexa. “Uma solução depende de um esforço multilateral, mas as tentativas de mediação não conseguiram estabilizar a situação”, diz ela. “O Brasil poderia exercer um papel importante, mas esta não é uma prioridade do governo atual.” O cenário só tende a piorar.