Berço da fundação de GM, Ford e Chrysler, Detroit foi chamada, por muito tempo, a capital mundial do automóvel. Desde 2008, no entanto, o município também passou a ser conhecido como um dos grandes símbolos do colapso desencadeado pela quebra do banco de investimentos Lehman Brothers. E de seus impactos avassaladores nas empresas dos mais variados segmentos. Batizadas como as “Três Grandes de Detroit”, as três montadoras acusaram o golpe com a crise que afetou o crédito e o bolso dos consumidores e viram suas vendas caírem drasticamente, colocando em risco a sobrevivência de suas operações. O estrago na economia local, baseada quase que exclusivamente no setor automotivo, foi enorme. Com demissões em massa e falta de perspectivas, muitos moradores abandonaram a região. De antigo polo mundial da produção de carros, Detroit se tornou uma cidade-fantasma. E até hoje ainda luta para voltar aos seus melhores dias.

A crise de 2008 não mudou apenas a “paisagem” da cidade. Mas também o cenário e a dinâmica de mercado para companhias em todo o mundo. “Muitas empresas desapareceram ou foram vendidas porque estavam alavancadas demais por ganhar dinheiro no mercado financeiro e não no mercado real”, diz Carlos Honorato, professor de economia da Saint Paul Escola de Negócios. “Algumas se reergueram com a ajuda dos governos de seus respectivos países.” A Casa Branca, sob o governo de Barack Obama, destinou US$ 80 bilhões para salvar as montadoras locais. “A ruína destas empresas teria um efeito devastador para inúmeros americanos, além de causar prejuízos enormes a nossa economia”, afirmou, na época, Obama.

A GM recebeu US$ 50 bilhões desse montante. A empresa pediu proteção contra falência em junho de 2009. E saiu do processo um mês depois, com a ajuda do governo americano, que comprou 60% da operação. No ano seguinte, a companhia captou US$ 23,1 bilhões em seu IPO. Ao mesmo tempo, o governo foi zerando, gradativamente, sua posição, até concluir o processo em 2013. Em um dos reflexos do período, a GM caiu da segunda posição no ranking global do setor, em 2008, para a atual quarta colocação, com uma fatia de 9%. Com dívidas de US$ 6,9 bilhões, sua conterrânea Chrysler também foi socorrida pelo governo. Após pedir concordata em 2009, a empresa teve 20% do negócio comprado pela Fiat. Em 2014, a montadora italiana assumiu o controle, rebatizando o grupo de FCA, que hoje está avaliado em US$ 27 bilhões.

Resgate: a fusão entre Perdigão e da Sadia, dos executivos Nildemar Secches e Luiz Fernando Furlan (acima, da esq. à dir.), teve uma injeção de R$ 400 milhões do BNDES. Já no caso da GM, a saída para a crise veio com a ajuda de um aporte de US$ 50 bilhões do governo dos EUA (Crédito:Antonio Milena/AE | Carlos Osorio/AP Photo)

O mercado brasileiro também produziu os seus exemplos.. A empresa de alimentos Sadia e a produtora de celulose Aracruz figuram entre os casos mais emblemáticos. Grandes exportadoras, as duas empresas costumavam buscar se defender da apreciação do Real com o uso de derivativos cambiais. Com a queda acentuada do dólar na época, elas reforçaram essa aposta, supostamente, sem o conhecimento e a anuência do alto escalão e dos conselheiros de ambas as companhias. E foram pegas no contrapé com o estouro da crise ao contabilizarem, respectivamente, perdas de US$ 2,5 bilhões e US$ 2,1 bilhões. “Uma das principais heranças da crise foram as normas que passaram a exigir mais transparência e detalhamento das aplicações financeiras nos balanços das empresas, tanto no Brasil como em outros países”, diz Marcelo Cambria, professor da Fipecafi.

Para a Sadia, o golpe foi tão forte que acelerou a fusão com a arquirrival Perdigão, criando a BRF. De uma hora para outra, passou de compradora a comprada. A Aracruz cumpriu um roteiro semelhante. O contexto precipitou a venda para a Votorantim Celulose e Papel (VCP), que já vinha sendo negociada e resultou na criação da Fibria. Nos dois casos, o Banco Nacional de Desen-volvimento Econômico e Social (BNDES) exerceu um papel fundamental. Na Sadia, houve um aporte de R$ 400 milhões na época do acordo, com a compra de participação na BRF.

Já no acordo da Aracruz, a negociação só foi concluída com a ajuda da instituição, que investiu R$ 2,4 bilhões para ficar com uma fatia de 30% da Fibria. Em março deste ano, a empresa foi comprada pela Suzano, criando uma gigante global de papel e celulose. “O grande saldo da Aracruz foi a incorporação de uma governança muito forte, fruto direto da gestão da VCP”, diz Fabio Padovani, sócio da Signium. Ele ressalta que a demanda por governança e a adoção de um perfil menos agressivo nas aplicações financeiras estão, de modo geral, entre as principais mudanças do mercado com raízes diretas na crise de dez anos atrás. “Antes, esses fatores estavam restritos ao âmbito das auditorias. Depois de 2008, eles viraram aspectos chave na estratégia de boa parte das empresas.”


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