A criação da Netflix talvez tenha sido uma das sacadas mais geniais da década passada. Na verdade, a empresa nasceu no final dos anos 90 e decolou com o modelo de aluguel de DVD no início dos anos 2000. Foi um dos fatores que levou ao fim das populares vídeo-locadoras – entre elas a famosa Blockbuster.

Quem nunca atrasou a devolução de um filme na Blockbuster, que se apresente. A Netflix, além de eliminar esse problema, criou uma experiência de consumo muito melhor. Uma variedade enorme de títulos disponíveis, uma facilidade para escolher a ordem em que desejava receber os filmes em casa e a conveniência de enviar e devolver os DVDs pelo correio eram somente algumas das várias características que levaram ao crescimento da Netflix e fizeram a Blockbuster ficar pelo caminho.

O streaming foi se desenvolvendo rapidamente e a Netflix teve a visão para se tornar a pioneira nesse processo. Aos poucos, o conteúdo entregue pela internet substituiu os DVDs. E, também aos poucos, a empresa veio se globalizando.

Hoje em dia, no entanto, esse não é mais o negócio da Netflix.

Entregar conteúdo pela internet é commodity. A diferenciação não está aí. A verdadeira base do negócio da Netflix é, de fato, o conteúdo que ela entrega, e não a forma de entregar. E é aí que a história começa a se complicar.

Ao longo dos meus 25 anos de mercado, aprendi que o teste de sobrevivência para qualquer empresa está na resposta à seguinte pergunta: “se o produto ou serviço oferecido pela empresa desaparecesse amanhã, os clientes sentiriam a sua falta?”. Se esse teste tivesse sido feito com a Netflix há cinco anos, a resposta seria, indubitavelmente, “sim”. O público sentiria muita falta, síndrome de abstinência, até. Se aplicarmos esse teste hoje, no entanto, a resposta já não é tão clara.

O que mudou? Quando a Netflix percebeu que seu negócio não era a forma de entregar conteúdo, mas sim o conteúdo em si, ela passou a focar na qualidade e excelência do conteúdo produzido. Séries e filmes sensacionais, polêmicos, artísticos. Um conteúdo realmente brilhante.

O problema é que a competição abriu os olhos e começou a chegar perto. A Amazon começou a produzir conteúdo brilhante, e em 2019, a Apple também entrou nesse jogo. Fora as gigantes do ramo que já produzem conteúdo brilhante há bastante tempo, como Disney, HBO e Showtime, entre outras. O consumidor, que há alguns anos, era totalmente fiel ao serviço da Netflix, hoje tem uma série de serviços tão bons – ou melhores – à sua disposição.

Bob Iger, o excelente CEO da Disney, coloca esse ponto de uma maneira bastante clara: “A Netflix está criando conteúdo para apoiar uma plataforma. A Disney cria conteúdo para contar grandes histórias. É muito diferente”. Acredito, realmente, que seja diferente.

O diferencial competitivo que a Netflix tinha no início da revolução do streaming se perdeu e hoje ela compete com outros gigantes do ramo de entretenimento. Muito difícil navegar nesse oceano, ainda mais quando lembramos que seu DNA é de uma empresa de tecnologia. Além disso, estão chegando ao mercado os agregadores dos serviços de streaming, para piorar ainda mais a situação.

Outro ponto de diferença é a geração de fluxo de caixa. Contabilmente, a Netflix gera lucro líquido, em grande parte por diferenças temporais no reconhecimento de despesas com conteúdo. A verdade, porém, é que o negócio de comprar e produzir conteúdo é extremamente intensivo em capital. A Netflix terá em 2019 mais um ano de fluxo de caixa negativo, ao redor de US$ 3 bilhões. E a expectativa da companhia é de continuar comendo caixa por muitos anos, ainda. Seus concorrentes, por outro lado, possuem sólida e positiva geração de caixa.

A empresa financia essa necessidade de caixa emitindo dívida corporativa. E tem acesso a crédito, porém ele é caro. Em um mundo onde a taxa de juros de 10 anos pagos pelo governo americano é de 1,90% ao ano, a Netflix paga no mesmo prazo ao redor de 4,60%. O rating de crédito da Netflix é BB- pela S&P Global (compare-se ao A da Disney, ao AA+ da Apple e ao AA- da Amazon).

Por essas e outras razões, a competição é desfavorável para a Netflix. Neste ambiente, não acho razoável que a companhia negocie a 100 vezes P/E. A Disney negocia a 30 vezes.

Recentemente estive no The New York Times DealBook Conference, onde Reed Hastings, CEO da Netflix, respondeu a perguntas por cerca de meia hora. Uma delas, excelente por sinal, veio de alguém na plateia: “Imagine que estamos aqui sentados conversando daqui a dois anos, e a Disney, que acabou de lançar o Disney Plus, tenha sido um sucesso como a Netflix. Você acha que a Disney deveria estar valorada no mesmo múltiplo que vocês, neste cenário?” A resposta do CEO: “Não sou expert em valuation”. Hastings saiu pela tangente.

Acho difícil ganhar dinheiro comprado em Netflix nesse momento. E acho que a Disney está com o preço justo ao redor dos US$ 150, ou seja, uma apreciação significativa não está nas cartas. Assim, nessa guerra do streaming, o melhor mesmo para quem é Value Investor é ficar assistindo.

Norberto Zaiet é economista, com MBA pela Universidade de Columbia. É sócio-fundador da gestora de Investimentos Picea Value Investors, em Nova York