Na ciência moderna é comum se dizer que não se obtém resultados substancialmente diferentes se as partes do experimento são as mesmas. Na prática quer dizer que, ainda que alguns fatores possam alterar o produto final, um bom observador pode mapear o resultado com antecedência. E um resultado parecido com outros deve acontecer em breve, com a aprovação final da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 23, também conhecida por PEC dos Precatórios. Com a legitimação da postergação de pagamentos de dívidas da União com credores de todos os tipos, será criado um alçapão legal que, invariavelmente, vai ser questionado na Justiça. Governadores, prefeitos e servidores públicos já se movimentam para acionar o Supremo Tribunal Federal (STF) para garantir que não haja postergação de seus recursos a receber da União.

Além dos problemas judiciais e dos impactos na vida dos que esperam receber, essa postergação (já que o governo rechaça a palavra calote por dizer que os compromissos serão honrados em algum momento) terá um alto custo. Segundo estimativa da OAB, após uma década da moratória proposta pelo Congresso Nacional, o governo federal terá um passivo de R$ 1 trilhão, valor considerado veneno para as contas públicas em qualquer situação. Para o presidente da Comissão Especial de Precatórios da Ordem dos Advogados do Brasil, Eduardo Gouvêa, a PEC fere ao menos duas cláusulas pétreas da Constituição: a independência dos poderes e as garantias individuais. “Além de várias outras cláusulas, como a da coisa julgada e a do direito adquirido”, afirmou.

FORA DO TETO Dívidas da União com os servidores da educação por meio do Fundef ficou de fora da agenda de fatiamento e serão pagas com recursos acima do teto. (Crédito:Jorge Leão)

Com algumas dessas infrações debaixo do braço, pelo menos 12 dos 27 governadores já começam a estudar soluções legais para receber as dívidas judiciais a que têm direito. Em condição de anonimato, dois governadores confirmaram à reportagem que há estudos avançados sobre o tema, e uma reunião com outros chefes do Executivo estadual está marcada para que haja uma ação conjunta. “É um problema que precisa ser enfrentado porque desestrutura as projeções de receita dos estados e dos municípios”, disse um governador do Nordeste.

Entre os servidores, até o momento, a única garantia de pagamento é a destinada aos profissionais da educação, por meio do Fundef. O problema é que o senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), decidiu que os R$ 15,6 bilhões em dívidas judiciais do Fundef com o Amazonas, Bahia, Ceará e Pernambuco fossem pagos com valores acima do teto. Para Roseane Sallim, doutora em contas públicas, essa solução é fictícia. “Eles [os senadores e deputados] costuram uma solução para o teto de gastos. Se o Auxílio ou o Fundef vão para cima do teto é só um detalhe operacional para justificar a rachadura”, disse.

EFEITO CASCATA A especialista ressalta ainda que a postergação se questionada no STF e mantida, levará também a uma enxurrada de medidas similares em outras esferas. “Estados e municípios irão postergar seus pagamentos e, nesse caso, os credores são em sua maioria pessoas físicas e pequenas empresas”, disse. Para Cícero Lamber, consultor de assuntos financeiros da Câmara, há uma preocupação com a questão do parcelamento do Fundef em três vezes, determinado por Bezerra, porque essa saída já foi barrada no STF em outras ocasiões. “Por ser um direito líquido e despesa obrigatória do poder público o Supremo entende que precisa ser pago de uma vez.” Henrique Pinto, consultor legislativo do Senado, também assume o risco de judicialização, mas considera que neste momento é a solução para evitar um problema maior. “O custo fiscal dessas decisões apresenta potencial para colapsar a máquina pública, diante do esvaziamento quase que completo dos recursos discricionários”, afirmou. Esvaziamento de recursos é o que os credores também estão prevendo para 2022.

“O QUE SABEMOS É UMA GOTA; O QUE IGNORAMOS É UM OCEANO”

Paulo Sergio Prime

A frase de Isaac Newton define bem o que aconteceu no Congresso na votação do Orçamento Secreto (repasse de emendas do relator do Orçamento para parlamentares sem a necessidade de lastrear quem pegou o recurso e para onde foi o dinheiro). A situação foi a seguinte. O Supremo Tribunal Federal (STF) exigiu que o Congresso fosse transparente com o Orçamento Secreto. Em um gesto de boa fé, o Congresso aprovou na segunda-feira (29) que as emendas RP9 (como são chamadas tecnicamente) serão identificadas, sim. Agora, elas terão as marcas “Parlamentares”, “Agentes Públicos” ou “Sociedade Civil”, mantendo em sigilo o nome do deputado ou senador que solicitou o dinheiro.

Para provar que eles também têm limites, os parlamentares determinaram que os recursos destinados a emendas de relator não possam ultrapassar a soma dos valores destinados para as bancadas (regionais, de partidos e setoriais). Isso significa que, com base no Orçamento previsto para 2022, as emendas do relator poderão somar R$ 16,2 bilhões ano que vem. Só não podemos perguntar para onde foi.